No último dia 10 de junho o Serpro publicou no Diário Oficial da União um “Acordo de Cooperação nº124.479/2022” com a empresa DrumWave Brasil Tecnologia Ltda. Embora disponha de um CNPJ e tenha sido criada por brasileiros, a empresa nasceu em Palo Alto, na Califórnia (EUA). Ela vem desenvolvendo um ecossistema de monetização de dados, no qual o titular deles poderá negociar diretamente com diversos players no mercado online, não importa a cadeia produtiva, uma remuneração em troca do acesso às suas informações. O acordo embora coloque o Brasil na vanguarda de um movimento econômico mundial, deixa margens para dúvidas se ele está sendo realizado dentro dos parâmetros definidos pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Fundada em 2015 na Califórnia, a DrumWave criou o seu escritório no Brasil em 2019 e conta com outra unidade em Singapura. Ela é comandada pelos brasileiros Andre Vellozo (CEO da companhia), Bruno Aracaty e Santiago Ortiz. Nos últimos seis anos outros cofundadores foram se agregando à empresa, gente de peso e prestígio no mundo financeiro e da Tecnologia norte-americana. Entre eles destaca-se o ex-CEO da Visa no Brasil, Fernando Teles.
Revolução
A proposta da DrumWave é revolucionária, poucas empresas no mundo estão empreendendo nesse movimento. Não foi à toa que ganhou a adesão ao projeto de diversos grandes nomes da tecnologia norte-americana (no vídeo em que explica o papel da empresa André Vellozo cita alguns dos parceiros de projeto). Até no suporte de infraestrutura a empresa brasileira conta com o apoio da IBM. A empresa abre a possibilidade real das pessoas – donas de seus dados pessoais – poderem monetizá-los na Internet.
A empresa desenvolveu o “Personal dWallet” uma aplicação que faz um score de todos os seus dados pessoais visando a monetização para o fechamento de acordo comercial. Trata-se de um novo conceito ou forma de ver o tratamento dos dados e controle dos mesmos pelo titular. Hoje os dados estão hospedados em grandes provedores de nuvem como, por exemplo, a Amazon ou o Google. E na visão dessas bigtechs, quem detém a custódia dos dados tem a “posse” dos mesmos. Isso significa que a negociação dessas informações de milhões de pessoas e empresas no mercado passa estritamente por elas.
O que a DrumWave e outras fintechs estão desenvolvendo e já estão causando uma revolução no mercado é justamente a mudança de mão, ou do controle desse dinheiro. A empresa do Vale do Silício levanta o seguinte questionamento: por que os seus dados pessoais têm de continuar nas mãos das grandes empresas para elas negociarem livremente com quem quiser e você não ganhar nada com isso?
É óbvio que uma guerra será travada futuramente entre as bigtechs e as empresas que pretendem atuar no mercado como “dealers” dos donos desses dados. Não seria factível acreditar que a Amazon ou o Google aceitarão passivamente que o controle de bilhões de dólares em dados de usuários mudem de mãos. Que passe para as mãos de seus donos, e sejam negociados através de empresas como a DrumWave?
As bigtechs irão espernear, mas certamente não poderão impedir essa mudança de foco na ordem econômica mundial. Porque esse novo modelo já conta com o apoio de bancos e financeiras, da indústria e até mesmo do comércio eletrônico, em todo o mundo. Para este blog é gratificante poder ver uma empresa criada por brasileiros no Vale do Silício estar na vanguarda desse movimento.
Segredo
Tentei conversar com Andre sobre a DrumWave, mas infelizmente o empresário ignorou os pedidos deste blog. Mas entrevistas concedidas por ele no mercado deu para se tirar dúvidas e conhecer melhor a empresa. O empresário parte do princípio de que uma pessoa fornece dados diariamente e de graça na Internet para empresas, sem direito a nenhuma remuneração pelos lucros que acabam gerando no mercado online. “O mercado fala em capturar dados. A gente sempre pensou no contrário: entregar dados. E a quem nós vamos entregá-los? Ao proprietário”, afirmou André em entrevista concedida ao site Fintechs Brasil. O dono do dado receberá um score (pontuação), criado a partir de sua navegação e informações prestadas livremente à empresa.
Transparência
O acordo assinado no dia 9 de junho e publicado oficialmente no dia 10, foi fruto de diversas reuniões prévias ocorridas no Ministério da Economia que começaram em fevereiro deste ano, sendo a última realizada no dia 2 de maio. Ao todo foram realizados seis encontros segundo a agenda oficial da Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia. Desses encontros participaram a diretoria do Serpro e da DrumWave, além do Secretário de Governo Digital, Fernando Mitkiewicz e sua equipe ministerial. Até a IBM esteve presente em uma reunião.
Nenhuma informação sobre essas reuniões foram divulgadas pela empresa ou pelo governo durante a fase de negociação. Mas a partir do momento em que se assinou um acordo e este tornou-se público, o mínimo que se esperaria deles seriam informações que pudessem esclarecer sobre o que será feito com os dados de cidadãos brasileiros e como eles serão notificados sobre isso.
A empresa alegou questões contratuais impostas pela estatal para não divulgar o que foi acertado comercialmente com o Serpro. Portanto não se sabe como uma empresa privada, com sede no Vale do Silício, mesmo tendo sócios de origem brasileira, terá acesso aos bancos de dados do Serpro e o que irá lucrar com eventual prestação de serviços. Não está claro, por exemplo, se tal acordo envolverá transferência internacional de dados de brasileiros, nem quais.
Serpro ignora a LGPD
O que isso pode estar ferindo a Lei Geral de Proteção de Dados também não será conhecido por hora. Não há nenhum indicativo de que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tenha dado algum parecer prévio sobre tal transação comercial travestida de “Acordo de Cooperação”, cuja vigência vai até dezembro deste ano. Nem mesmo se o Serpro procurou a ANPD para apresentar alguma informação sobre o acordo e eventuais riscos detectados pela estatal durante a vigência contratual. Se prestou essas informações, escondeu do público.
A atuação do Serpro mais uma vez deixa a desejar na discussão sobre como vem procedendo no uso dos bancos de dados da Receita Federal e outros órgãos a quem presta serviços. Se está agindo de forma aderente com a LGPD, ao entregar dados de brasileiros para uma empresa privada, isso algum dia ficará esclarecido. Mas eventual punição do responsável (eis); daqueles que autorizaram a liberação dos dados sem o consentimento dos titulares, talvez seja impossível punir no futuro, já que o Brasil poderá no próximo ano ter uma mudança de governo.
A estatal tem apenas uma “autorização” da Receita Federal do Brasil para compartilhar os bancos de dados contendo informações de brasileiros e contribuintes pessoas físicas com “terceiros”, quando essas informações forem necessárias para a realização de “políticas públicas”. Fica a dúvida: qual a política pública nesse acordo com a DrumWave? Como ainda não sofreu nenhum tipo de reprimenda por sua obscura atuação no mercado de dados, o Serpro segue em frente sem se sentir incomodado ou acuado, não dando satisfação à ninguém.
Esse comportamento da estatal vem sendo proporcionado por decisões fora da realidade da Lei Geral de Proteção de Dados. Recentemente, por exemplo, o Serpro ganhou do Tribunal de Contas da União uma autorização para agir ao seu bel prazer com os dados da Receita Federal, ao proferir um Acordão no qual deixou claro que “não viu” nenhum indício de negociação da estatal com empresas privadas por conta da entrega de dados dos cidadãos, como no caso dos bancos. Não consta até o momento que o Serpro tenha buscado uma autorização de uso dos dados junto aos donos deles. A desculpa é sempre a mesma, o governo vem desenvolvendo políticas públicas com esses dados ofertados para bancos e financeiras. Quais?
A leniência dos organismos de controle para a forma de agir do Serpro, contradiz com outro parecer proferido pelo próprio TCU, que acaba de verificar a fragilidade do governo federal em termos de adequação às normas previstas pela LGPD. Esse “Acordo de Cooperação” publicado no Diário Oficial, que não explica absolutamente nada sobre os seus fins, é mais uma forma de atestar o quanto o governo está despreparado para cumprir a nova lei e como vem ignorando a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
Autoridade Monetária apoia
Apesar da ausência da ANPD no debate, pelo menos aos olhos do mercado financeiro o acordo DrumWave/Serpro será benéfico para os brasileiros, já que os maiores interessados serão os grandes bancos que operam o “Open Finance”. O Banco Central vê na monetização de dados e o controle efetivo do seu dono como o novo paradigma no comércio mundial.
A DrumWave pode declarar que até já ganhou o apoio do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que durante a sua participação no ano passado no CIAB/Febraban – o maior evento de tecnologia bancária do país – defendeu a monetização de dados no setor financeiro:
A DrumWave já tem desenvolvidos mais de 100 projetos de monetização de dados pessoais no mundo e promete um novo modo de “empoderar” os donos dos dados brasileiros, que até agora são meros fornecedores deles para as grandes bigtechs e outras empresas no mercado, sobretudo, os bancos e o comércio eletrônico.
Há até a promessa de criar uma “conta poupança” para recém nascidos, por pedido feito pelos pais, que já poderão ir “monetizando o filho” enquanto ele cresce, até que tome consciência de que a sua vida privada foi devassada por diversas empresas desde que deixou o útero da mãe. Questão polêmica que fica para uma agenda futura de discussões mundo afora, sobre os limites legais para a coleta de dados de crianças e adolescentes.
A DrumWave alega que vem tentando quebrar o paradigma da titularidade do dado, conferindo esse “empoderamento” para o dono da informação, que hoje é o elo mais fraco na cadeia da negociação de dados no mundo. Na entrevista concedida para o site Fintechs Brasil, da Jornalista e Editora-Chefe, Léa de Luca, o CEO Andre Vellozo explicou como a empresa vem se preparando nesse contexto de “empoderamento” do titular do dado:
No site da DrumWave se pode obter mais informações sobre essa monetização, mas não está claro como um simples mortal poderia sentar-se para negociar com o Google, por exemplo, para ter direito à remuneração pela coleta diária de suas informações. Obviamente a empresa brasileira deverá de alguma forma fazer essa intermediação.
Não há da parte deste blog nenhuma intenção de fazer uma “oposição burra” ou negativar as ações da empresa e os resultados esperados por ela. É uma realidade que já até ganhou a aceitação do Banco Central e poderá impulsionar a moeda digital brasileira. A única ressalva que este veículo faz sobre o tema é total falta de transparência do governo e de uma empresa estatal. Além de uma discussão jurídica mais clara sobre o quê podem e pretendem fazer com os dados dos brasileiros que, por enquanto, têm apenas uma promessa de remuneração pelo uso comercial deles.
*Uma coisa é certa, a DrumWave é mais cumpridora da LGPD do que o Serpro na questão da “política de cookies”. Não obriga o internauta a aceitar a coleta de suas informações de navegação se ele não quiser.