O governo decidiu mudar algumas diretrizes que norteiam os atuais programas criados para atender a 139 mil escolas públicas com “conectividade significativa” à Internet. E acabou esvaziando o controle da Anatel sobre os R$ 3,1 bilhões que foram destinados pelo leilão do 5G para garantir o acesso à rede pelas unidades de ensino. As mudanças foram discutidas em agosto e o anúncio estava previsto para ocorrer em setembro com a publicação de um decreto presidencial. Mas, ao que tudo indica, ocorreram alguns entraves administrativos e, possivelmente jurídicos, que ainda não foram resolvidos.
As correções de rumo foram anunciadas pela Casa Civil da Presidência da República durante uma constrangedora reunião mensal do Gape – Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas; que é formado pela Anatel, os Ministérios da Educação e das Comunicações, além de representantes da EACE – Entidade Administradora da Conectividade de Escolas, criada pelas operadoras móveis para bancar a conexão das escolas públicas com o dinheiro do 5G.
São quatro as principais mudanças definidas pela Casa Civil, que atua como a gestora do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), e decidiu inserir a “Estratégia Nacional de Educação Conectada” como uma das suas prioridades para o crescimento da infraestrutura de rede no país:
1 – Caberá ao MEC comprar os equipamentos para as escolas e não mais a EACE;
2 – Além das escolas, a conectividade também deverá abranger as Unidades Básicas de Saúde;
3 – O prazo de implementação do projeto cai de 36 meses para 24 meses. A partir daí o MEC e os Estados e Municípios seguirão compartilhando atribuições para a manutenção dele.
4 – Além dos postos de saúde, o Gape também ficará encarregado de gerir através da EACE a conexão de 40 mil escolas públicas. E não apenas as 8.365 unidades de ensino que estão em localidades onde não contam com nenhum tipo de infraestrutura de rede para acesso à Internet.
Constrangimento
Essa alteração de rumo foi anunciada pelo secretário Adjunto da Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento da Casa Civil da Presidência da República, Marcos Toscano Siebra Brito, na reunião mensal do Gape ocorrida no dia 30 de agosto deste ano. Mas o detalhamento só pode ser conhecido agora em novembro, porque o Gape relutou em liberar a Ata daquela reunião.
Marcos Toscano disse que as mudanças que estava anunciando eram fruto de conversas “bilaterais” que manteve com cada um dos integrantes do Gape. Isso não ficou claro na descrição da Ata do encontro. Aparentemente os técnicos da Anatel levantaram questionamentos que não pareciam serem dúvidas de quem já conhecesse previamente as mudanças. Talvez tivessem uma percepção de que após o lançamento da “Estratégia Nacional de Educação Conectada” pelo Ministério da Educação, mudanças provavelmente ocorreriam. Mas não pareceu que as alterações fossem de conhecimento dos técnicos da agência.
Nessa apresentação a Casa Civil da Presidência deixou claro para o Gape que a atribuição de comprar equipamentos para as escolas passaria a ficar à cargo do Ministério da Educação. E o dinheiro do 5G não seria apenas canalizado para conexão à Internet das escolas. Também atenderia as unidades básicas de saúde (UBS).
A partir daquela reunião o Gape passaria então a ter como meta a conexão de 40 mil escolas públicas no país, que a Casa Civil vem considerando como sem conexão à Internet, já que estariam a uma distância superior a 20 quilômetros de distância de algum ponto de fibra óptica.
O Gape já havia identificado esse problema, mas em suas vistorias concluiu que essas escolas têm conectividade ruim, que precisa ser melhorada. Só que o órgão comandado pela Anatel não via isso como uma prioridade sua diante dos custos que o programa teria de assumir com os recursos do 5G. Para a agência outros programas poderiam resolver a questão.
Sustentava a tese de que o foco do Gape e da EACE deveria ser na conectividade das 3.365 escolas que identificou como unidades que estão em áreas remotas no Norte e no Nordeste e não contam com nenhum tipo de oferta de conexão à Internet. Ou, num esforço maior, um total de 8 mil unidades que estariam nas mesmas condições em todo o país.
Da mesma forma, o Gape nunca estudou a possibilidade de usar recursos do 5G para conexão de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Isso não tornou-se atribuição das operadoras móveis através da EACE, simplesmente porque essa decisão não foi tomada pelo TCU quando aprovou o edital do leilão do 5G. O órgão de controle exigiu apenas que parte do dinheiro que deixou de ser arrecadado pelo governo com a venda da frequência de 26Ghz fosse canalizada para a conexão de escolas.
Na Ata da reunião, não ficou clara a razão de o governo encurtar de 36 meses para 24 meses a execução do programa de conectividade escolar. Mas seguindo o calendário político dá para concluir que a Casa Civil quer entregar o projeto ainda dentro do Governo Lula, daqui a dois anos, ao invés de atravessar um período eleitoral em 2026.
Já com relação a ter deixado com o MEC a atribuição de comprar computadores a explicação dada na Ata foi que o ministério pode acelerar o processo através da adesão às Atas de Registro de Preços que o FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação) dispõe para a aquisição desses equipamentos. Faz sentido, mas nos bastidores essa motivação também pode ter sido outra.
Há vários registros da insatisfação dos integrantes do MEC no Gape, de que a EACE não fornecia informações sobre os processos de aquisição de equipamentos. O Gape tem um subgrupo que deveria acompanhar a execução financeira do projeto. Mas a EACE nunca forneceu as informações sempre alegando “sigilo comercial” dos seus contratos com fornecedores.
Essa posição era sustentada pelo presidente do Gape, Vicente Aquino, que nunca se mexeu para impor às EACE que abrisse a sua contabilidade e mostrasse os contratos com fornecedores. Nessa reunião do dia 30 de agosto o MEC voltou a cobrar as informações, mas Aquino limitou-se a concordar e prometer que avaliaria a questão para os futuros contratos. Ou seja, as contas daquilo que já foi feito ninguém saberá.
Da contabilidade da EACE até agora sabe-se apenas que foram gastos R$ 32 milhões, dados informados em audiência pública na Câmara dos Deputados. É muito dinheiro, considerando que até agora a entidade apenas realizou um piloto ao longo do seu primeiro ano de existência e somente conectou 177 escolas.
PowerPoint
A estratégia montada pelo PAC em comum acordo com o MEC e o Ministério das Comunicações, longe portanto dos olhos do Gape, foi descrita num slide de apresentação chamado “Panorama da Conectividade nas Escolas”. E continha as seguintes diretrizes:
- Para cerca de 98 mil, das 140 mil escolas, havia presença de fibra na região ou, pelo menos, a uma distância próxima à localidade da escola e que o desafio não se concentrava na infraestrutura, mas poderia haver um desafio econômico, de nenhum prestador ver interesse econômico em atender aquela escola ou também um desafio administrativo, de gestão para a contratação da conectividade par aquela escola;
- Para o outro grupo de cerca de 40 mil escolas que estavam fora da zona de fibra, o desafio seria maior, por se tratar de escolas situadas em regiões isoladas, em regiões rurais e, sobretudo, nas regiões Norte e Nordeste. Apresentou um mapa de “calor”, que mostrava como essas escolas se concentravam nessas duas regiões, onde o desafio, de fato, era levar a infraestrutura, o que significava, em casos diferentes, a implantação de redes de fibra ótica ou a implantação de infraestrutura para receber um sinal de satélite ou a infraestrutura para receber um sinal de rádio, o que exigiria um esforço maior de levar infraestrutura para essas regiões onde se localizavam essas 40 mil escolas e onde o setor de telecomunicações ainda não tinha chegado.
Para tentar contemporizar o constrangimento na reunião de agosto, a Coordenadora-Geral de Tecnologia e Inovação do MEC, Ana Úngari Dal Fabbro, tentou explicar que, com a criação da Estratégia Nacional de Educação Conectada (Enec) em setembro, haveria a formação de um “comitê executivo” como um colegiado maior, com mais órgãos do governo interagindo mutuamente.
Esse novo comitê, que acabou se concretizando com o anúncio oficial da Enec em setembro, conta com as participações do Ministério da Educação (coordenador); Ministério das Comunicações; das Minas e Energia; da Ciência e Tecnologia; da Casa Civil, além do FNDE (Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação), Telebrás e RNP – Rede Nacional de Ensino e Pesquisa.
Mas para o Gape e principalmente para o conselheiro da Anatel, Vicente Aquino, ficou claro que não é mais esse grupo quem dá as cartas na educação conectada. Aquino sabe que as diretrizes virão do Comitê da Enec e ele apenas tratará de fazer com que a EACE cumpra o que for determinado. Para não ficar apenas com cara de “subordinado”, Vicente Aquino foi chamado para compor o Comitê Executivo da Enec. Mas lá ele sabe que é apenas mais um na multidão governamental.
*Na reunião de agosto houve um esboço de reação dos integrantes da Anatel às mudanças, que ainda aguardam para terem um novo embate político dentro do governo. Essas reações serão expostas em nova reportagem, a seguir: