Ceitec vem fazendo visitas secretas com empresas, apesar da suspensão do TCU

O liquidante da Ceitec, oficial da Reserva da Marinha Abílio Eustáquio de Andrade Neto, vem exercendo atividade paralela à decisão do TCU, que no início de setembro suspendeu o processo de extinção pelo prazo de 60 dias. Ele vem se reunindo secretamente com empresas – sem informar na agenda oficial da estatal – que estão interessadas nos equipamentos que serão vendidos quando for concretizado o fim da estatal do chip pelo governo.

Abílio não escondeu sua insatisfação com a decisão do TCU de suspender o processo de extinção da Ceitec, quando participou de audiência pública na Câmara dos Deputados. Deixou claro o interesse do governo de vender a fábrica aos pedaços para o mercado privado, apesar de alguns alertas de empresas deste mesmo mercado privado, que eram parceiras da Ceitec e tinham preocupações em relação ao futuro de alguns projetos contratados com a estatal. Mas encerrou sua participação afirmando que nenhuma atividade estava sendo feita na Ceitec após a decisão do TCU.

Receber visitas de empresas interessadas em “esquartejar” a Ceitec fazem parte dessas “ações que não podem parar”? O TCU talvez diga algo sobre isso algum dia.

Visitas secretas dentro da fábrica

No dia 5 de outubro, por exemplo, Abílio e direção da estatal receberam as visitas de executivos da Valid S/A e da CCRR RFID Sistemas de Gestão e Tráfego Ltda. As duas empresas mantinham contratos com a Ceitec e com a possibilidade dela ser extinta, agora possivelmente querem comprar baratinho os equipamentos que serão postos à venda pelo governo.

Estiveram naquela data nas dependências da Ceitec o superintendente Comercial e Operações da Valid S/A, Higrio Carvalho Urruth, além dos sócios e proprietários da CCRR RFID, Ricardo Zoghbi Coelho Lobo e
Marcio Allegrini Muniz.

O que foi discutido não se sabe, pois oficialmente essas visitas nunca existiram.

Não?

Este blog teve acesso às informações do controle interno de visitas à Ceitec, que comprova a presença dos três executivos nas instalações da empresa estatal. Pode não informar claramente o que foram fazer lá e nem se visitaram todas as áreas que dispõem dos equipamentos que interessam para a compra, mas certamente os executivos não estiveram lá à toa. Higrio Carvalho Urruth embora figure como executivo da CCRR no documento da Ceitec, na realidade ele tem perfil no LinkdIn como executivo da Valid.

As duas empresas participaram em março de 2020 de uma consulta pública realizada pelos técnicos do PPI – Programa de Parceria de Investimentos, do Ministério da Economia, com cada uma das empresas separadamente, que tinha por objetivo saber do mercado de semicondutores se haveria algum interessado em comprar a Ceitec.

Nenhum demonstrou interesse na compra da empresa, como um todo, mas houve várias manifestações de interesse em comprar pedaços da estatal, já que o governo estava decidido a se livrar da Ceitec.

As que demonstraram o interesse tinham duas percepções distintas: ou queriam se livrar do fabricante estatal para ingressar com seus parceiros multinacionais no Brasil, ou tinham interesses nos equipamentos, porque com a extinção da Ceitec perderiam um “parceiro” que tinham em diversos projetos. As duas empresas em questão aparentam estar na segunda opção.

CCRR RFID

Para a CCRR, a extinção da Ceitec causa uma preocupação com relação ao chip para o pedágio. A estatal é fornecedora desses chips para ela, segundo a versão contada por Marcio Allegrini Muniz, que participou da audiência. O nome dele também consta agora na relação dos visitantes das instalações da Ceitec.

Na audiência com os técnicos do PPI, Marcio disse ainda que “a decisão governamental sobre o que fazer com a Ceitec influencia muito no interesse do mercado com relação ao ativo”.

No caso da CCRR, o interesse pela estatal teria como maior foco o chip do pedágio. Marcio Muniz chegou a sinalizar que “poderia buscar promover uma evolução tecnológica do produto ou mesmo um modelo de negócios via royalties”.

Sobre a estatal, em si, via com bons olhos a ideia de o governo transformá-la numa espécie de “Agência Reguladora”, já que a seu ver existiria na Ceitec “capital humano” com capacidade para exercer tal função no mercado.

Muniz também citou como possibilidade a Ceitec virar um ICT – Instituição de Pesquisa Cientifica e Tecnológica especifico para os produtos de IoT (Internet das Coisas). “Mas nesse caso a Ceitec não deveria restringir
somente aos seus produtos, abarcando também produtos de outras empresas do setor. E encerrou afirmando que entendia “ser mais difícil achar investidores com apetite para aquisição da Ceitec como um todo”.

Valid S/A

A empresa Valid S/A também foi consultada numa audiência pela equipe do PPI, para saber se teria interesse em comprar a Ceitec. A reunião também ocorreu no dia 3 de março de 2020.

Quem prestou informações pela Valid ao PPI foi o Superintendente Comercial Adriano Franki. Em termos gerais a empresa tem uma gama enorme de atuação no mercado. Segundo levantamento do PPI ela opera na “fabricação” de cartões de crédito e de débito, carteiras de habilitação, impressos de segurança, carteiras de identidade e processamento e emissão de documentos com impressos de segurança e prevenção a fraudes, logística de documentos e gestão de suprimento de produtos gráficos, smart cards.

Também atua no segmento de selos rastreáveis, contactless cards, certificados digitais, cheques, extratos bancários, sistemas de identificação biométrica, sistemas para modernização administrativa, aplicativos para internet banking, sistemas de gestão de assinaturas para operadoras de telefonia móvel, sistemas de armazenamento inteligente, serviços de rastreabilidade utilizando tecnologia RFID e contas de serviços de utilidade publica.

Adriano Franki disse que o relacionamento com a CEITEC veio desde 2010 e com foco em RFID, porem pautado na compra do chip e não no encapsulamento (usam o chip da CEITEC para rastreabilidade dos cartuchos de impressoras). A Ceitec era fundamental para o projeto da Valid nessa área.

Contou na época que a Valid tinha a liderança Sim Card e a tecnologia dominante atualmente, sendo que a Valid tem a lideranca do setor com o uso de chips para diversas aplicações descritas acima e achava que no segmento de RFID havia boas perspectivas de crescimento (crescimento do IoT) e que as manufaturas chinesas deviam aportar no Pais para tentar explorar o crescimento esperado. Citou a questão da rastreabilidade de produtos (potencial projeto dentro dos Correios para rastreamento de objetos), que a Ceitec já tinha fechado negócio, mas foi obrigada a cancelar quando veio a desestatização.

Mesmo na área de cartões de crédito e crescimento dos aplicativos moveis, Adriano disse que o governo já era “um importante cliente para a Valid”. Ou seja, o mesmo governo que extingue uma estatal parceira de uma empresa privada, era o maior comprador dos serviços desta mesma empresa privada.

O executivo disse ainda que a “Ceitec poderia ajudar na implementação e controle de protocolos de segurança, podendo ser uma facilitadora entre setor publico e privado”.

Para a Valid a importância da parceria com a Ceitec estava no fato dela garantir que a estrutura fabricação gozasse dos incentivos fiscais previstos pela Lei de Informática via PPB ( Processo Produtivo Básico), que “exige que chip venha de um fornecedor nacional”.

Sobre o “capital humano” da estatal, o executivo da Valid disse aos técnicos do PPI que via os funcionários da estatal “com bastante gabarito”. Porém, não opinou sobre a qualidade da sala limpa e os maquinários da Ceitec, embora tenha ressaltado que tinha conhecimento de que seriam necessários novos investimentos.

Neste ponto, Adriano Franki afirmou no relatório do PPI que, “o produto atualmente oferecido no PPB possui diferença de tamanho, preço e qualidade frente outros fornecedores internacionais, sendo que a Ceitec tinha preço pior, com qualidade inferior e tamanho maior”. Sendo assim, acreditava que a estatal necessitaria de uma “reformulação no parque fabril para tentar trazer chips cada vez menores e mais competitivos”.

Saiu do encontro com os técnicos do PPI afirmando que “precisaria avaliar o interesse da Valid sobre o ativo todo ou em partes. A principio não haveria interesse em investir na manipulação de silício, mas poderia avançar em uma parceria publico – privada para identificação de cidadãos, bem como do passaporte (melhor formato da parceria precisaria ser estudado)”.

E deixou a seguinte informação para o governo, que não foi levada em conta na época: “Com eventual liquidação da Ceitec, a Valid deixaria de ter um faturamento de 10% da sua ROL e teria que credenciar um novo fornecedor local para manter o PPB”.

Com a saia-justa criada pela Valid, os técnicos do PPI passaram a deduzir por eles próprios que a Valid não estaria preocupada com isso, ao afirmarem categoricamente em seu relatório que “não ficou perceptível um apelo grande pelo ativo, sempre focando muito o seu discurso com relação ao uso das verbas para fins do beneficio do PPB (Ceitec não é fornecedora estratégica para a Valid)”.

Ahh não? Então uma empresa quer operar no Brasil, precisa de um fabricante local que assegure acesso aos incentivos fiscais da Lei de Informática (principal deles a redução do IPI cobrado na época com base nas vendas dentro do país) e os gênios do PPI afirmam que a estatal não era estratégica para a Valid? Ainda mais com os projetos de RFID para os Correios, do passaporte, e outros citados pelo executivo?

* O que precisava para os técnicos do PPI entenderem o recado. O executivo da Valid se ajoelhar diante deles?