Por Jeovani Salomão* – Quando estive à frente da Federação Assespro, dois temas relevantes foram levados pela entidade ao STF. O primeiro, mais midiático, foi relacionado aos bloqueios do WhatsApp. Juízes da primeira instância, em função da impossibilidade do aplicativo de revelar conversas particulares, estavam argumentando, e tomaram decisões neste sentido, que a Bigtech estava desobedecendo ordens judiciais e como penalidade interromperam, por mais de uma vez, o aplicativo no país.
O tema já havia chegado ao Supremo por outras ações, em especial uma impetrada pelo PPS, mas diante do risco iminente de prejuízo para os usuários, aqueles que foram os realmente punidos pelas decisões judiciais, ingressamos no processo utilizando um dispositivo chamado Amicus Curiae, por meio do qual pudemos nos manifestar e ter papel decisivo no posicionamento do então presidente Lewandowski. O magistrado, tanto quanto nós, compreendeu que a medida era desproporcional e prejudicava milhões de usuários, inclusive o próprio judiciário, que já se utilizava, naquele momento do tempo, do app para notificações e intimações. Desde então, nenhuma plataforma de mensageria instantânea foi bloqueada pela justiça.
O segundo tema levado por nós ao STF, desta vez como principais protagonistas, é bem mais complexo. Trata-se de como e quando as redes sociais e demais softwares que possuem informações relevantes devem oferecer dados para a justiça, em especial, para a solução de crimes. Algumas questões são pacificadas, como a disponibilização dos metadados (horário e de onde foram feitos os posts, por exemplo). Quanto ao conteúdo, quando se trata de transgressões graves, como sequestros e pedofilia também não há divergências. Nestas situações, as empresas prestam as informações prontamente. Já outros casos são mais controversos. Em crimes menores a legislação dos países envolvidos possui particularidades e, em geral, a empresa de software se coloca em um dilema insolúvel. A justiça daqui pune se a empresa não disponibilizar o dado e a de lá pune se o dado for disponibilizado.
Para resolver o impasse, há um acordo bilateral chamado MLAT (mutual legal assistance treaty), o qual, infelizmente, não vem sendo seguido pelos juízes de primeira instância, apesar de ter sido aprovado por todos os mecanismos disponíveis no direito e na legislação brasileira. Este foi justamente o ponto da Ação Direta de Constitucionalidade impetrada pela Assespro.
Este longo introdutório tem por objetivo deixar claro que não tenho, particularmente, nenhum preconceito ou desavença com o Facebook o qual, afinal, foi um dos principais beneficiários das ações que discutimos no Supremo. Na condição de representante setorial, minha tendência natural sempre foi, e continua sendo, a defesa das empresas do setor, sejam elas nacionais ou estrangeiras. No entanto, não é possível fazer silêncio quando elas, em especial as maiores, mais relevantes e influentes, fazem besteira, o que, a propósito, o Facebook está fazendo reiteradamente.
Apenas para tratar o mais grave, comecemos pelo vazamento dos dados de 50 milhões de usuários que foram utilizados pela empresa Cambridge Analytica para propaganda política. É possível, que os rumos da eleição americana de 2016 tenham se modificado por este crime, bem como o posicionamento inglês referente ao Brexit. Grande bobagem Facebook!
Há poucos dias, tanto o Facebook, quanto o Instagram e o WhatsApp saíram simultânea e globalmente do ar por mais de 8 horas. Ora, para quem pretende se transformar no maior ator do Metaverso e já atualmente está posicionado como enorme plataforma de negócios, um crash desta natureza é inaceitável. Certamente, múltiplos erros ocorreram. Quem é do mundo da tecnologia sabe que é possível ter ambientes de contingência capazes de manter o serviço ativo quando há um problema em um dos datacenters. Por alguma razão, ou o Facebook não investiu nisso ou, se o fez, cometeu um grave erro de avaliação técnica.
Mais inacreditável, ainda, é imaginar que as estruturas dos três aplicativos estejam intrincadas ao ponto de serem dependentes umas das outras. Não é nem um pouco razoável condicionar o funcionamento estável de uma plataforma à outra. Em resumo, a arquitetura projetada deveria manter os aplicativos de forma independente para que impactos de uma interrupção não afetassem ao mesmo tempo os três serviços. Erro severo na construção da infraestrutura, inadmissível.
De forma praticamente paralela, outra polêmica veio à tona recentemente. Frances Haugen, ex-colaboradora da gigante corporação, tornou públicas severas acusações que estão deixando muita gente de cabelo em pé. Nas próprias palavras da autora: “Eu já conhecia um monte de redes sociais e era substancialmente pior no Facebook do que em qualquer outra que eu tivesse conhecido antes”. “O Facebook, repetidamente, mostrou que prefere o lucro à segurança”. “Havia conflito entre o que era bom para o público e o que era bom para o Facebook, e o Facebook escolheu várias vezes otimizar para seus próprios interesses – como ganhar mais dinheiro”. O caso foi parar no congresso americano e imagino que os parlamentares tenham um imenso trabalho pela frente.
Já havia mencionado anteriormente, em outro artigo, o problema dos algoritmos das redes sociais, cujo objetivo único é manter o usuário mais tempo conectado. Se a qualidade do conteúdo é ruim ou boa, tanto faz. Se os posts estão pregando o amor ou disseminando o ódio, tanto faz. Se os usuários estão ou não tendo problemas psicológicos, tanto faz. Desde que se mantenham conectados. E é justamente este problema que ganhou dimensão e voz nas palavras de Haugen.
O Facebook é um titã do mundo atual. Uma das maiores corporações globais, com impacto em bilhões de pessoas. Está na hora de compreender que deve haver um propósito muito maior que apenas ganhar dinheiro. Empresas desta magnitude deveriam ter um real compromisso com a melhoria da sociedade. Não podemos enquanto humanidade permitir que se continue como está, afinal assim não dá, né Facebook?!?!?!
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.