Transparência, a abertura no método da reportagem

Por Marília Gehrke* Explicar ao leitor os modos de fazer do jornalismo é fundamental para cultivar uma relação de honestidade com a audiência. O oposto disso, quando erros ocorrem, é o sentimento de engano e quebra de confiança por parte dos leitores

Em 2017, quando desenvolvemos o projeto Guaíba Dados* dentro da disciplina Jornalismo Ambiental em Dados no PPGCOM/UFRGS, uma de nossas preocupações centrais era contar ao público como obtivemos as informações. Na pesquisa científica, o como equivale ao método, ou seja, ao percurso adotado para testar hipóteses e obter uma resposta relacionada ao problema que se deseja investigar.

O cenário não poderia ser mais adequado: o projeto que buscava levantar bancos de dados públicos sobre o Lago Guaíba, em Porto Alegre, estava inserido em um programa de pós-graduação, onde se faz ciência; e dialogava, ainda, com uma prática cujas origens estão ligadas à aplicação das ciências sociais à reportagem: o Jornalismo Guiado por Dados, derivado do Jornalismo de Precisão e da Reportagem Assistida por Computador (RAC).

À época, os alunos foram distribuídos em editorias, dentro das quais premissas foram estabelecidas e hipóteses testadas. Para promover a abertura do método que utilizamos, optamos por contar, narrativamente, o que funcionou e o que não funcionou em nosso percurso investigativo — leia o trecho ‘Caminhos e Descaminhos’ -, bem como indicamos, a partir do uso de hiperlinks, as bases de dados levantadas e os estudos consultados.

Naquele momento, não utilizamos código de programação para extrair dados públicos; conduzir análises por meio de planilhas parecia ser suficiente para obter respostas. Assim, criamos uma seção específica para disponibilizar os datasets, conforme as editorias. Dentro desses espaços, assinalamos a pergunta norteadora e o método utilizado nas análises.

Gosto de pensar que a abertura do método no Jornalismo Guiado por Dados, que chamo de transparência metodológica, funciona como uma bula de remédio. Algumas pessoas vão ler, outras não, mas o documento está disponível — pode e deve ser consultado quando o objetivo é obter aprofundamento nos modos de fazer. Outra definição interessante e bastante didática é da jornalista Patrícia Campos Mello. No livro “A máquina do ódio”, ela apresenta a transparência como a versão jornalística do “visite nossa cozinha”.

Em minha tese de doutorado — em elaboração — , investigo os elementos de transparência adotados pelo jornalismo de dados brasileiro durante a cobertura da Covid-19. Outros pesquisadores vêm realizando estudos com a audiência para descobrir o quanto a abertura de informações é promissora para (r)estabelecer uma relação de confiança e honestidade junto aos leitores.

Um desses estudos, bastante recente, ouviu 885 leitores nos Estados Unidos para testar que tipos de recursos aumentam a sensação de credibilidade percebida. Em linhas gerais, Johnson e St. John III (2021) descobriram que, além da leitura da notícia propriamente dita, o que amplia a percepção de credibilidade da audiência é uma espécie de box explicativo sobre por que a notícia foi escrita (qual a relevância do tema), além de uma fotografia do jornalista e uma pequena biografia que inclui informações sobre seu background profissional, expertise e até mesmo certos hobbies.

No Brasil, alguns jornais vêm testando box explicativos. A título de exemplo, sugiro a leitura desta matéria de GaúchaZH e das publicações do Núcleo Jornalismo de Dados. Além de argumentar por que um tema é importante, a equipe de reportagem, em ambos os casos, conta como as apurações são feitas.

Em geral, a audiência gosta de saber que, do outro lado do balcão, existe um ser humano conduzindo o processo de produção noticiosa. Dessa forma, errar não é o problema; o problema é não assumir que errou. Ou assumir parcialmente e tentar disfarçar, ou mesmo empurrar a culpa para terceiros. Esse tipo de malabarismo discursivo é muito mais pernicioso para a credibilidade do jornal do que um honesto mea-culpa ao melhor estilo “Caro leitor: erramos, e precisamos conversar honestamente sobre o nosso erro”.

Publico este texto na esteira das discussões da semana sobre a reportagem da Folha de S.Paulo que alardeou sobre o uso de vacinas vencidas da Covid-19 sem necessariamente considerar o contexto da produção de informações e sua disponibilidade nos bancos de dados públicos. Mais informações sobre essa discussão na newsletter Farol Jornalismo.

O texto traz diversos dados, mas não aponta em detalhes o passo a passo — neste caso, oferecer o código-fonte seria interessante — que levou aos resultados, nem questiona a origem da informação (vamos combinar que o Ministério da Saúde não tem sido a fonte mais confiável nesta pandemia). Ou seja, faltou contextualização** e senso crítico na abordagem às fontes — etapas inerentes ao processo de verificação no jornalismo.

Se você observar os comentários nessa matéria e no texto posterior, em que a Folha de S.Paulo faz uma correção, percebe que existe uma audiência enganada e decepcionada, como se um pacto de confiança tivesse sido quebrado. A situação se torna ainda mais crítica quando os leitores julgam que o jornal não fez uma correção à altura.

Um dos elementos de transparência que tenho percebido se repetir na cobertura da pandemia é a apresentação dos níveis de incerteza ou limitações conectadas a um banco de dados. A própria Folha de S.Paulo já conduziu boas reportagens (a exemplo desta) em que esclareceu os limites de sua análise. Os dados não existem simplesmente no mundo; eles são produzidos e disponibilizados dentro de um contexto que precisa ser esclarecido junto à notícia.

A transparência metodológica que havíamos testado em laboratório, lá em 2017, continua se mostrando um caminho viável e promissor para a construção de uma relação de respeito com a audiência.

*O portal Guaíba Dados reúne informações sobre o lago Guaíba, que tem Porto Alegre e outros quatro municípios às suas margens. Os dados deste portal foram produzidos na disciplina Jornalismo Ambiental em Dados, oferecida em 2016/2 para mestrado e doutorado, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A disciplina foi uma iniciativa que teve como objetivo aplicar os conhecimentos do jornalismo de dados a questões ambientais. O Guaíba foi escolhido como tema desta experiência pela sua extrema importância no abastecimento de água na região e por ser um ponto de interesse em comum a todas as pessoas que vivem em Porto Alegre. A disciplina foi coordenada pelos professores Luciana Mielniczuk (in memoriam), Ilza Girardi e Marcelo Träsel.

** “[…] contextualização é o processo de articulação complexa de elementos que, na construção da notícia, busca situar o acontecimento jornalístico dentro do recorte da realidade à qual pertence, com o estabelecimento do maior número possível de conexões entre esse acontecimento e os elementos relevantes a ele relacionados, partindo dos aspectos singulares e identificando informações conexas, pertinentes e consistentes que contribuam para ampliar a compreensão crítica do tema, possibilitando, assim, a produção de conhecimento.” (LÜCKMANN, 2020, p. 193)

*Marília Gehrke – Ph.D. researcher in Communication at UFRGS and Data Journalism Professor at IDP – MBA em Jornalismo de Dados. Interested in: data journalism, transparency, disinformation and technology.