Discussões intermináveis sobre conectividade ideal para escolas públicas, atrasos na tomada de decisões, mudanças em estatutos, tentativas de barrar a Telebras para abrir mercado para Elon Musk, estão impedindo o governo de avançar na sua intenção de garantir uma Internet de qualidade para 20 mil unidades públicas de ensino na região Amazônica. Por trás dessa movimentação política estão as operadoras móveis que venceram o leilão do 5G e são obrigadas a destinar R$ 3,1 bilhões no projeto, com o apoio de setores da Anatel interessados em manter sua estutura de poder que perdeu no início deste ano para a equipe do ministro das Comunicações, Juscelino Filho.
Criado há dois anos pela Anatel para conectar escolas públicas à Internet com recursos do leilão do 5G, até agora o programa “Aprender Conectado” da Entidade Administradora da Conectividade de Escolas (Eace), só conseguiu realizar um “projeto piloto” em 177 unidades de ensino. As operadoras móveis que participaram do leilão das frequências controlam com mãos de ferro a liberação da contraparte de R$ 3,1 bilhões que são obrigadas a aplicar nas escolas e impedem técnicos nomeados pelo governo de executar o projeto. As teles na EACE tem papel preponderante em duas diretorias e no Conselho de Administração.
Nessa estratégia de barrar as ações da equipe de Juscelino Filho e Padilha na Eace, as operadoras contam com a ajuda política de setores da Anatel que controlam o Gape – Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas. Esse órgão, comandado pelo conselheiro da Anatel, Vicente Aquino, também reúne técnicos do MEC e do Ministério das Comunicações e tem como função primordial controlar as atividades da Eace.
Golpe estatutário
Em janeiro deste ano os ministros Juscelino Filho (Comunicações) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais) tentaram virar o jogo em nome do governo, realizando uma série de mudanças tanto na Eace quanto no Ministério das Comunicações. Esperava-se que o governo conseguisse destravar o programa “Aprender Conectado”. Só que até agora a estratégia não decolou.
O principal problema ocorre na governança da Eace. Embora os ministros Juscelino Filho e Alexandre Padilha tenham nomeado respectivamente, o presidente da Eace, Flavio Santos (esquerda), e o Diretor de Relações Institucionais e Comunicação, Jhon Ribeiro ( direita); ambos estão de mãos atadas.
Quando assumiram seus cargos em janeiro deste ano, ambos foram surpreendidos com o novo modelo de governança da Eace. Esse modelo foi aprovado em dezembro, assim que as operadoras móveis souberam nos bastidores que o governo faria nomeações para cargos de diretoria.
O golpe estatutário aprovado em reunião do Conselho de Administração esvaziou o poder de comando do presidente, já que ela não seria mais “alguém de confiança das empresas”. Dentre as mudanças destaca-se, por exemplo, a que determinou que o presidente não tem mais representação legal para autorizar, sozinho, os gastos administrativos ou investimentos no valor de até R$ 10 milhões.
Antes de Flavio Santos assumir o cargo, a presidência da Eace tinha competência administrativa/financeira para realizar gastos ou investimentos até esse montante. Agora Flavio Santos se quiser comprar um palito de fósforo é obrigado a pedir permissão ao Diretor Financeiro, Carlos Saldanha (foto). Além disso a presidência da entidade foi esvaziada ao perder o comando sobre todo o setor Jurídico, o de operações de sistemas, o de compras, além do compliance. Essas áreas foram todas transferidas na mudança do estatuto para a Dirtoria Financeira.
Saldanha assumiu o cargo em janeiro deste ano. E logo em seguida tirou férias de 15 dias. Isso acabou gerando uma reprimenda do presidente do Gape, o conselheiro da Anatel, Vicente Aquino, durante uma reunião do grupo.
Ele já foi Diretor Financeiro do “Seja Digital”, entidade também criada pela Anatel para executar o serviço de implantação da TV Digital em todo o país e a prepração da faixa de 700 Mhz para ser utilizada na operação do 4G. Antes dessa missão trabalhou na Vivo e na Telefonica. Hoje, na Eace, cumpre todas as determinações que lhe forem repassadas pelas operadoras móveis.
Pelo edital do leilão do 5G o TCU detrminou que as empresas que participassem deveriam arcar com os custos de implantação de Internet nas escolas públicas. Esse custo foi orçado após o resultado do leilão em R$ 3,1 bilhões. Mas com certeza já saltou para mais, pois como o dinheiro não está sendo investido no “Aprender Conectado”, está gerando dividendos no mercdo financeiro. Quanto? Ninguém tem a menor ideia, já que a Eace, por ser uma entidade de caráter privado, não se vê obrigada a prestar contas.
O único valor divulgado até agora como gasto para conexão de 177 escolas públicas num projeto piloto, saiu em torno de R$ 32 milhões.
Retorno do “compulsório”
Mas o controle das operadoras móveis na Eace não se resume apenas ao interesse de impedir os eventuais gastos ou investimentos que forem propostos pelos representantes do governo. Elas nunca suportaram a ideia de ter de dar uma contrapartida em dinheiro pelas licenças baratas do 5G. Conseguiram com apoio da Anatel criar a Eace justamente para terem o controle dessa destinação dos recursos.
Há uma nitida movimentação de bastidores, no sentido delas tentarem resgatar parte do dinheiro que foram obrigadas a investir nas escolas pelo Tribunal de Contas da União. A Anatel não tinha interesse nisso. Tanto que em seu edital nem constava essa contrapartida para escolas públicas. Quem jogou água no chopp do “leilão não arrecadatório” foi o TCU, por entender que a venda das frequências sairia barato demais para as empresas.
Esse interesse poderá ser constatado na próxima sexta-feira pelo governo. Há uma reunião marcada do Gape/Anatel e a expectativa nesse organismo é de que a Eace apresente o nome da empresas vencedoras da sua RFP (Request For Proposal ou Pedido de Proposta). A entidade adotou esse procedimento licitatório para a escolha dos prestadores de serviços de conexão em fibra óptica para cinco mil escolas públicas no Norte do país. Um negócio estimado em R$ 650 milhões, a ser pago em 24 meses de execução do contrato por alguma empresa.
Tanto no Gape, quanto na Anatel, circula uma informação nos bastidores de arrepiar os cabelos. Duas operadoras móveis integrantes no Conselho de Administração da Eace apresentaram propostas nessa RFP. Se for confirmada a informação da presença delas num procedimento licitatório criada por elas mesmas, vai ser difícil de explicar isso para a opinião pública. Afinal, como podem as operadoras móveis que foram obrigadas pelo TCU a destinar dinheiro para escolas públicas, porque compraram licenças baratas no 5G, disputarem uma licitação montada por elas mesmas?
Pior: como explicar que, se vencerem a disputa no mercado, acabarão remuneradas por elas mesmas?
A RFP foi realizada pelo Diretor de Operações, Luiz Carlos Gonçalves, outro representante das empresas na Eace. Gonçalves já trabalhou na Oi e na antiga GVT (hoje VIVO). Se confirmada a presença de operadoras móveis no processo de contratação da Eace, ele será o responsável por permitir essa brecha no processo de compras. As informações sobre as RFPs da Eace desapareceram da sua página na Internet. Assim como as Atas de reuniões do Conselho de Administração.
Telebras
Há uma outra explicação para a oposição que as operadoras móveis estão fazendo contra integrantes do governo na diretoria da Eace e desta vez contam com o apoio de técnicos da Anatel. No dia 21 de fevereiro deste ano os ministros Juscelino Filho (Comunicações) e Camilo Santana (Educação) se reuniram com o Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Educação Conectada (Enec) e decidiram apoiar a presença da Telebras no projeto de conexão das escolas com o dinheiro do 5G em áreas remotas do país.
Foi um sinal de que pelo menos 20 mil escolas da Amazônia poderão contar com a Telebras e as empresas parceiras com quem ela vem fechando acordos para a exploração de serviços de conectividade via satélite no âmbito do programa Gesac- Governo Eletrônico, Serviço de Atendimento ao Cidadão.
A estatal nos últimos meses buscou se reposicionar no mercado e tornou-se numa integradora de serviços com empresas do setor privado. Tal decisão foi significativa para a imagem da estatal dentro do próprio governo, sobretudo nos gabinetes de ministros que não gostam da ideia de ter a Starlink, do empresário Elon Musk, prestando serviços de conexão de satélites em políticas públicas.
As teles móveis com o auxílio de técnicos da Anatel que demonstram interesse não confessado na presença da Starlink no programa governamental partiram para o ataque. O que um burocrata faz quando não quer fazer andar um projeto dentro do governo? Senta em cima dele. Pois tem sido justamente isso o que vem ocorrendo.
Desde a 25ª reunião, ocorrida em 23 de fevereiro, que o Gape ( Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas ), um órgão comandado pela Anatel e conta com as presenças de representantes do MEC e do Ministério das Comunicações, além das teles – tem se arrastado em longas discussões sobre velocidade ideal para conexão de escolas e o enquadramento do GESAC da Telebras no programa “Aprender Conectado” da Eace.
O novo Gesac atende aos parâmetros de velocidade de 20 Mbps que era o piso estebelecido para satélites, podendo atingir 60 Mbps graças ao apoio de empresas parceiras. Isso já havia sido discutido previamente na reunião da Enec com a presença de dois ministros.
Então não haveria mais razão para técnicos da Anatel ainda estarem discutindo velocidade de conexão. A não ser que eles considerem que o Gape esteja acima das decisões de dois ministérios (Comunicações e MEC). Por sinal, foi nesta mesma reunião que o MEC deixou claro que aprovava a presença da Telebras e do Gesac no “Aprender Conectado”, porque o modelo “seguia a definição dos parâmetros mínimos, já estipulados pela Enec, para uso pedagógico da internet, nas escolas do Brasil”, declaração dada na reunião por Anita Gea Martinez Stefani, representante do MEC no Gape.
Portanto, o que os técnicos da Anatel estavam fazendo na reunião era protelar a decisão do Gape de liberar a RFP voltada para a contratação de serviços de conexão por satélite, que até hoje não saiu e nem se tem notícias de quando sairá. Talvez, quem sabe, na reunião desta sexta-feira do órgão possa ser anunciado algo nesta direção.
O fato é, desde fevereiro deste ano o Gape protela a decisão. Não se tem notícias de que tenha mudado essa postura, já que o órgão vem escondendo do público as Atas das reuniões realizadas em março e abril. Mas dificilmente tomaram alguma decisão, pois a EACE continua aguardando por uma ordem do Gape para chamar as empresas para a disputa pelo serviço.
Quem vem operando a estratégia de empurrar com a barriga o assunto, atrasando a estrega de um “estudo” sobre velocidade ideal para conexão de escolas é o subgrupo de trabalho do Gape denominado “SGT-Diagnóstico”, formado por oito representantes, sendo eles da Anatel (Coordenação), MEC, Ministério das Comunicações e das empresas TIM, Claro, Algar Telecom, Telefônica. As mesmas empresas que participam de forma majoritária do Conselho de Administração da Eace.
Este mesmo subgrupo, coordenado pelo Gerente de Universalização e Ampliação do Acesso Eduardo Marques da Costa Jacomassi, da Anatel (foto), foi o responsável no ano passado por um estudo, no qual dava preferência para a contratação de satélites de baixa órbita para conexão de escolas públicas ao custo estimado de R$ 1 bilhão. Ou seja, a preferência era pela contratação da empresa de Elon Musk, a Starlink, única a operar satélites LEO no mercado. A proposta vazou para a imprensa e acabou engavetada. Mas o interesse na contratação dela, ao que parece, ainda não. Talvez porque uma das revendas Starlink no Brasil seja a operadora Vivo, razão pela qual a presença da Telebras no “Aprender Conectado” acabou se tornnado numa pedra no seu sapato.