O lobby que atrapalha o avanço tecnológico na identificação do cidadão

Enquanto um acordo entre a Dataprev e os cartórios de registro civil comandados pela Arpen (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), sofre o bombardeio de lobistas na Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Ministério da Gestão e a Secretaria de Governo Digital (SGD) fazem sala para os mesmos interessados em impedir que esse avanço tecnológico chegue à nova Carteira de Identidade Nacional (CIN).

Com um discurso de “defesa dos interesses do cidadão brasileiro”, a consultoria InterID – que não revela quem está por tras pagando pelos seus serviços – vem causando tanta confusão política, que até mesmo uma frente parlamentar mista do Congresso Nacional composta por opositores e apoiadores do governo tem sido usada aparentemente sem saber exatamente para quê. A denúncia dessa consultoria na Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), só levou como prova uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo.

Reação

É evidente que por trás dessa ação estão empresas de certificação digital e segurança da informação que não aceitam perder mercado com os novos rumos tecnológicos tomados pela Transformação Digital. Elas estão apenas ganhando tempo, pois sabem que a situação é irreversível. Por mais alguns anos ainda podem atuar como Autoridades de Registro para emissão de certificados da ICP-Brasil. Mas o mercado já começou a dar sinais de fadiga.

O último baque no setor foi decisão da Serasa, uma das maiores empresas de risco de crédito, que também atuava no mercado de certificação, que acabou de anunciar que está saindo desse segmento. Este blog faz a seguinte pergunta: Quem ainda pagaria para ter um certificado digital que garanta a veracidade dos seus dados pessoais, se o governo dá acesso a todos os serviços do portal Gov.br fazendo a sua identificação de graça?

Esse é o cerne da questão. Com a nova Carteira de Identidade Nacional o documento assegura ainda mais o acesso do cidadão aos serviços de governo, sem ter de recorrer a uma infraestrutura privada intermediária que cobra caro pelo serviço.

CNJ

O governo continua aguardando com preocupação a decisão da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para continuar tocando junto com os cartórios de registro civil o projeto de validação de informações cadastrais de cidadãos brasileiros com apoio de biometria. Ele será a base do sistema da nova Carteira de Identidade Nacional (CIN), já emitida para mais de quatro milhões de brasileiros em 23 estados e também no Distrito Federal.

A depender da decisão do CNJ, se for negativa para o acordo Dataprev/Arpen, todo um projeto de política pública terá que ser revisto, causando um atraso tecnológico ao país. A proposta governamental visa aumentar a confiabilidade e credibilidade das informações dos brasileiros que interagem no seu dia a dia com os serviços prestados pelos órgãos públicos e no mercado privado, sobretudo os bancos que emprestam dinheiro através do crédito consignado.

Incongruência

Na denúncia formulada no CNJ a InterID alega que a empresa de informática Confia, vinculada à ARPEN terá acesso às bases de dados dos cidadãos na Dataprev para, em paralelo, vender serviços antifraude e de validação de identidade aos bancos. E chegou a precificar quanto essa empresa ganhará com o uso dos dados dos cidadãos na prestação do serviço ao mercado financeiro: R$ 1 bilhão/ ano.

É curiosa a denúncia ao CNJ, pois ela não faz muito sentido. A Dataprev já opera há anos no processo de validação das informações de cidadãos brasileiros, aposentados ou pensionistas, que buscam o acesso ao crédito consignado nos bancos. Também foi o mesmo serviço que garantiu ao governo liberar o Auxílio Brasil durante a pandemia da Covid-19 e continua sendo um instrumento seguro para o pagamento de outros benefícios sociais.

Tal serviço de validação prestado pela estatal até bem pouco tempo rendia quase 40% das suas receitas e nunca foi questionado por ninguém. Por que a Dataprev iria agora abrir mão de parte desse dinheiro para os cartórios ou ainda dividí-lo com uma empresa privada de informática? O acordo ARPEN/Dataprev ainda não foi anunciado oficialmente por aguardar a decisão do Conselho Nacional de Justiça. Somente após será possível avaliar essa questão.

Consultoria

O InterID – Instituto Nacional de Identificação, se apresenta em sua página na Internet como uma entidade que tem por objetivo, “unir esforços para que a identificação tenha voz e lugar entre os mais importantes decisores técnicos, políticos e sociais”.

No entanto, no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) da Receita Federal, o InterID tem como atividade principal realizar “organizações associativas ligadas à cultura e à arte”. Mas deixa em aberto a possibilidade de ter como atividades secundárias, as que forem voltadas para o mercado de certificação digital.

A direção do InterID se faz passar por porta-voz dos interesses do cidadão no que diz respeito à proteção da sua identificação, mas na realidade vem atuando como um escritório de lobby com grande influência nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Justamente para atrapalhar um projeto que irá beneficiar a quem diz que defende.

A consultoria possui três “sócios fundadores” e os currículos estão em sua página. Dos três o diretor-presidente, Célio Ribeiro, é o que aparenta publicamente ter a maior atuação política dentro e fora do governo na área de certificação digital. Célio informa em sua página na Internet que trabalhou por 30 anos como executivo de grandes empresas de segurança e certificação digital.

O executivo também atua no campo político como secretário-executivo da Frente Parlamentar Mista para Garantia do Direito à Identidade (FrenID), que reune 200 deputados e senadores de todos os partidos. Essa função, embora não remunerada, lhe assegura a chance de estreitar contatos com os parlamentares e pedir apoio deles para as suas atividades no Congresso Nacional.

A frente parlamentar, em si, tem pouco peso político. É apenas parte da estratégia que todo escritório de Lobby costuma empreender, quando deseja ter o apoio parlamentar dentro do Congresso Nacional para causas das mais diversas. Razão pela qual, desde o ano passado tem havido uma explosão de frentes parlamentares no Legislativo, o que acaba banalizando a sua relevância política.

O executivo sempre posta fotos sobre suas relações com o setor público, como forma de deixar transparecer uma proximidade com figuras proeminentes do governo e do Legislativo, coisa que aparentemente não tem. Mas provavelmente foram graças aos pedidos de audiência com parlamentares da frente, que a ministra da Gestão, Esther Dweck, parou a sua agenda ontem (27) para receber o lobista acompanhado de deputados do PDT, conforme o registro fotográfico estampado pelo próprio Célio na página da InterID. Até o secretário de Governo Digital, Rogério Mascarenhas, participou do encontro.

Procurado para falar da Frente Parlamentar e do interesse político dela o executivo deu a seguinte declaração em nota oficial:

“A Frente Parlamentar Mista para Garantia do Direito à Identidade (FrenID) teve sua criação e estatuto aprovados na melhor forma da lei e do direito. Entre seus objetivos, descritos no artigo 2º do seu estatuto (https://www.camara.leg.br/internet/deputado/Frente_Parlamentar/54479-integra.pdf), está o de acompanhar a formulação da Lei de Diretrizes Orçamentárias e demais orçamentos anuais, de forma a garantir a alocação de recursos para projetos do Sistema Nacional de Identificação. A composição da FrenID, incluindo deputados e senadores, que não são parceiros e sim signatários, encontra-se disponível em https://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=54479“.

Porta-voz do mercado

Além dessas funções, Célio Ribeiro também acumula a presidência da Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia em Identificação Digital (Abrid), uma entidade que se diz “sem fins lucrativos”, mas tem como associadas ou “parceiras” grandes empresas de certificação digital e até mesmo a Casa da Moeda do Brasil.

Em outra página também apresenta os órgãos governamentais que atuam como “parceiros” da Abrid, mas não é clara sobre os tipos de acordos que a entidade fechou com eles. Os links dos “parceiros, entre eles do ITI – Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, do Exércido Brasileiro e da Polícia Federal, quando não direcionam para uma página inexistente, pouco acrecentam em termos de informações, pois são apenas as páginas oficiais desses organismos na Internet.

Procurado para falar sobre como se remunuera por meio das atividades que exerce Célio Ribeiro foi evasivo. Não informou a origem dos seus rendimentos e também não falou sobre como paga os colaboradores da InterID. Ao contrário, disse que eles trabalham de graça; pela causa da identificação do brasileiro.

“O Instituto Internacional de Identificação (InterID) é uma entidade civil sem fins lucrativos. Seus atos estatutários que norteiam sua atividade estão publicizados em sua página na internet www.interid.org. Nossos associados parceiros desempenham o papel de apoiadores, e ao unir todas essas forças, criamos algo verdadeiramente significativo no âmbito do ecossistema de identificação. Nossa diretoria é formada por pessoas que possuem suas próprias responsabilidades e compromissos profissionais, mas estão dispostas a colaborar com o InterID. São indivíduos notáveis, com vasta experiência e sucesso em suas trajetórias profissionais, dedicando seu tempo, conhecimento e esforço à causa da identificação por meio do Instituto”, informou por meio de nota o consultor Célio Ribeiro.

Outro sócio

O segundo sócio e fundador da InterID, Claudio Machado, já atuou nos dois lados do balcão. Ela já foi governo e agora está na iniciativa privada, atuando contra o próprio governo que já trabalhou. Claudio foi assessor da Presidência da Dataprev durante a gestão de Rodrigo Assumpção, no Governo Dilma Rousseff. Foi nessa época que ele começou a se informar e atuar na construção de um projeto de identidade digital.

Ao deixar o cargo na estatal, Claudio criou uma consultoria na iniciativa privada e chegou a trabalhar para a ARPEN – Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais; num projeto de integração das bases de dados dos cartórios em todo país que não deu certo. Por essa razão teve o contrato rescindido. O executivo parece ter deixado a ARPEN guardando mágoas, pois agora na InterID tentar impedir o fechamento de um acordo no qual teve breve participação na construção da estratégia tecnológica.

Na ARPEN, o presidente Gustavo Renato Fiscarelli confirmou ao blog que contratou Claudio Machado para um projeto de integração de bases de dados. Machado teria inclusive indicado a empresa de informática que na época realizaria o serviço. Mas o projeto não conseguiu decolar e os constantes atrasos acabaram levando Fiscarelli a cancelar o contrato com a empresa de TI, além da consultoria de Claudio Machado. Por coincidência ou não, agora a ARPEN se vê às voltas no CNJ por conta de um acordo denunciado pela InteriD, que tem entre os seus fundadores o ex-consultor e ex-assessor da Dataprev. Procurado para dar a sua versão, Claudio Machado não respondeu a nenhum contato telefonico ou por serviço de mensagens.

O terceiro sócio da InterID, Carlos Collodoro tem um perfil técnico e este blog não obteve informações relevantes sobre a sua atuação na consultoria.