Liberou geral: ANPD “passa pano” para monetização público/privada de dados de brasileiros

A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) acaba de produzir um documento, que ficará para os anais da inutilidade de um órgão recém emancipado do governo por Medida Provisória, que ainda não sabe exatamente para quê serve. Trata-se da Nota Técnica Nº75/2022, produzido pela Coordenação-Geral de Fiscalização da ANPD, que buscou saber o teor do Acordo de Cooperação Técnica 124.479/2022 entre o Serpro e a empresa do Vale do Silício DrumWave, que teve a participação ativa da Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia.

Resultado? Nada.

Na “conclusão” desta Nota Técnica, a fiscalização da ANP informa que:

Mas a fiscalização foi até lá com o seu corpo técnico constatar se há ou não tal transferência? Aparentemente não, a julgar pela “conclusão” a que chegou a Fiscalização da ANPD.

Tudo indica que houve apenas uma mera troca de ofícios entre os organismos envolvidos no processo e ficou subentendida a “boa-fé” da estatal ao alegar que não está cedendo dados para teste pela DrumWave, ou prestando algum tipo de serviço de validação de informações.

Aparentemente a ANPD simplesmente perguntou: “vocês estão compartilhando dados de brasileiros”?”; ao que o Serpro respondeu: “não”. E para completar a situação surreal de um órgão – que no ano que vem, se aprovado o orçamento solicitado de R$ 42,3 milhões pelo Congresso, terá a competência legal de fiscalizar o mercado de dados no Brasil – os técnicos da ANPD pediram que, no futuro, caso o Serpro faça esse compartilhamento, que avise para eles que estão realizando tal procedimento.

Sentimento de impunidade

A Nota Técnica ainda guarda algumas peculiaridades. Primeiro, não abre para conhecimento do público todas as informações que colheu junto aos envolvidos, sob a alegação do “sigilo comercial”. Indaga-se: se é um mero “Acordo de Cooperação”, então que tipo de “sigilo comercial” teria que ser preservado dos olhos dos cidadãos interessados em saber o que farão com os seus dados?

Aliás, a resposta do Serpro ao questionamento da ANPD é quase um padrão. Foi praticamente a mesma encaminhada a este blog, quando solicitou informações por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta à ANPD foi produzida pela Diretoria Jurídica da estatal, não por acaso, dirigida por um advogado, que ao mesmo tempo também atua como “Encarregado de Proteção de Dados” do Serpro; um notório caso de conflito de interesses:

Ou seja, o Serpro respeita tanto a fiscalização da ANPD, que sequer se deu ao trabalho de produzir um texto que fosse diferente ao que forneceu como explicação para um veículo de imprensa:

Política Pública?

O segundo questionamento que se faz é: qual a política pública que se pode extrair de um “acordo de cooperação técnica” de uma estatal com uma empresa de monetização de dados pessoais do Vale do Silício? A Fiscalização da ANPD buscou saber sobre o interesse público – também através de ofício – junto à Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia.

Que enrolou na resposta, mas a ANPD engoliu numa boa. A SGD informou o seguinte:

A resposta da Secretaria de Governo Digital neste trecho suscita uma série de dúvidas. É papel do governo remunerar cidadãos pelo uso de seus dados, mesmo que isso ocorra em parceria com empresa privada? O governo neste caso, não estaria indiretamente sendo remunerado também pelo compartilhamento dos dados, que não são seus? O discurso da SGD neste ponto é idêntico ao da própria DrumWave, quando a empresa do vale do Silício afirma que a iniciativa visa o “empoderamento do cidadão no uso de seus dados”. No caso do governo foi acrescentado apenas na resposta à ANPD, que tal estratégia comercial visa dar “acesso a serviços públicos e privados”. Então o cidadão precisará pagar com os seus dados, por serviços públicos que já pagou através de impostos?

Papel da IBM no acordo Serpro/Drumwave

Seja por preguiça ou desconhecimento, a Nota Técnica da ANPD não esclarece, por exemplo, o porquê da SGD realizar nove reuniões por videoconferência ocorridas entre 1º de fevereiro e 25 de julho deste ano. Reuniões que envolveram pelo menos 34 autoridades do governo e executivos da iniciativa privada. Também omite o papel da IBM nesses encontros e no “acordo de cooperação” do governo com a DrumWave, já anunciado pela própria empresa do Vale do Silício. Ao que tudo indica a IBM irá participar com a sua nuvem e a sua plataforma de Inteligência Artificial. A multinacional tem contrato com o Serpro nesse sentido no valor de R$ 40,3 milhões.

O mais interessante ainda na resposta da Secretaria de Governo Digital foi que ela “não viu necessidade” de realizar um “Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais”, porque o acordo com a Drumwave tem como premissa o não compartilhamento de dados. Se não tem, o que o governo está fazendo nesse acordo, que permitiu a empresa anunciar em coluna do jornal O Globo para o próximo dia 15 de outubro, o início das operações da sua carteira de monetização de dados “dWallet”? Indaga-se da ANPD: se vai entrar em operação no dia 15 de outubro, não seria o caso de cobrar o tal relatório?

Na matéria de O Globo há uma informação interessante. O empresário da DrumWave afirmou que suas plataforma de monetização de dados conta com um certo “aval” ( o termo utilizado foi “validação”) do presidente Banco Central, Roberto Campos Neto. Não consta que a Autoridade Monetária tenha se pronunciado contra ou à favor da proposta da DrumWave, ao ponto de convalidar seus futuros serviços no mercado financeiro brasileiro. Nem tampouco o Banco Central regulamentou essa questão, que passaria ao largo de suas atribuições. Este blog procurou o Banco Central, mas a posição do órgão foi “não comentar” as declarações do empresário.

Por enquanto, consta apenas um vídeo de uma participação de Campos Neto num evento da Febraban, no qual ele fala em tese sobre os movimentos que andam ocorrendo no mundo financeiro que envolvem a monetização de dados. Sem dar “aval ou validar” ninguém, embora entenda que o caminho é sem volta nessa direção. (*e o blog não se opõe, desde que sejam sob regras e informações claras em relação ao modelo de negócio, o que até agora não ocorre).

*A Nota Técnica pode ser acessada na página oficial da ANPD.