Antes da decisão tomada ontem pelo presidente Lula no Decreto nº 11.768/23, de reativar a Ceitec, o orçamento previsto para a empresa voltar a funcionar em 2024 não passava de uma piada: R$ 46.2 milhões. Obviamente isso terá de ser revisto e possivelmente ocorrerá na primeira Assembleia Geral Extraordinária ainda a ser marcada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. É nesse momento que ficará claro se a reativação da única fábrica de semicondutores da América Latina foi uma decisão estratégica de governo para ser levada à sério ou apenas o cumprimento de compromisso de campanha.
Certamente os técnicos da área econômica lembrarão que o governo atravessa uma crise fiscal e, portanto, não dá para destinar tudo o que a Ceitec mereceria para voltar à condição de estatal produtora de chips. Muito menos fazer um planejamento de longo prazo. Será?
Não parece, pois dinheiro não é problema para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
Tanto, que em 2021, por exemplo, o MCTI assinou um “contrato de gestão” com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para destinar R$ 2,7 bilhões até o ano de 2030. Parte desse dinheiro também terá o suporte financeiro dos Ministérios da Educação e das Comunicações.
No valor global de R$ 2.727.060.775,00 previsto para repasse à “organização social sem fins lucrativos” até o ano de 2030, o MCTI se comprometeu em repassar R$ 789.643.981,84, dos quais R$ 68 milhões seriam consumidos pela RNP ainda no exercício de 2021. O restante virá através da seguinte programação orçamentária:
Já no “Cronograma de Desembolso” do Ministério da Educação para a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), a pasta ficaria responsável de irrigar a “OS” com R$ 1.332.416.793,16. Deste volume, o MEC já repassou em 2021 a quantia de R$ 121 milhões a acertou de complementar o restante do dinheiro até 2030 através da seguinte programação:
O Ministério das Comunicações, por sua vez, destinará até 2030 o valor global de R$ 605 milhões, sendo que já repassou R$ 65 milhões em 2021. O restante foi distribuído pela seguinte programação:
Ou seja, para irrigar organizações sociais supostamente privadas e “sem fins lucrativos” – que escapam solenemente dos órgãos de controle, que legalmente estão de mãos atadas e não tem como auditá-las – nunca falta dinheiro no Orçamento Geral da União desses ministérios.
Mas essa prática não foi criada apenas para beneficiar a RNP. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações conta com outras cinco “organizações sociais sem fins lucrativos”, que podem estar funcionando como verdadeiros ralos por onde escoam dinheiro público sem nenhum controle. São elas: o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), o Instituto Nacional De Matemática Pura e Aplicada (Impa), Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM).
FNDCT
No caso da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), entretanto, a situação é mais visível e escandalosa. Porque além de se alastrar por outros ministérios – que descobriram o benefício de lidar com uma organização social, quando escapam de licitações e podem despejar dinheiro público sem prestar contas dos resultados aos organismos de controle – há evidentes sinais de que a “OS” já descobriu outras formas de ganhar dinheiro dentro do MCTI.
O novo ralo por onde vazar dinheiro público para organizações sociais se chama Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). O MCTI pretende despejar do seu orçamento previsto para 2024; mais R$ 557 milhões em “manutenção de contratos de gestão” assinados com essas organizações sociais.
Este valor proposto pelo MCTI de R$ 550 milhões do FNDCT no orçamento de 2024, para pagamento de gestão de contratos com organizações sociais, indica que a pasta está elevando em mais de 70% a irrigação desses recursos para as “OSs”, se comparados com orçamentos anteriores. E essa alta também é verificada na alocação de recursos feita pela Administração Direta para as mesmas organizações. Como os repasses vem de diversas frentes, existe ainda a possibilidade de as organizações receberem algo em torno de R$ 220 milhões à mais; além da previsão orçamentária do FNDCT citada acima.
Mais dinheiro ainda
E o avanço dessas organizações sobre as verbas do FNDCT parece não parar. Recentemente o conselho gestor do fundo supostamente aprovou um novo repasse de R$ 250 milhões, para a RNP executar um programa de “Difusão e Suporte à Transformação Digital – Conecta & Capacita Brasil”.
Está previsto como “missão” no Termo de Referência da proposta aprovada pelo conselho que até 2026 a RNP irá “interiorizar o acesso digital com capacidade e segurança para redes de pesquisadores e escolar e ampliar a capacitação digital no Brasil, com foco em escolas e comunidades vulneráveis”. Um claro sinal de que o governo está abrindo mão de executar uma política pública, transferindo essa atribuição para uma organização social supostamente “sem fins lucrativos”. Que gastará o dinheiro como quiser, sem prestar contas à ninguém.
Silêncio
Curiosamente a aplicação do FNDCT a passa pelo crivo de um conselho gestor formado inclusive por “cientistas/sindicalistas”, que participam dele como representantes da área científica. A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a ABC (Academia Brasileira de Ciências) é um caso clássico de desleixo com a aplicação de verbas públicas.
Embora participem desse conselho e vivam reclamando com notas oficiais contra desvios de “dinheiro da Ciência”, sobretudo os recursos do FNDCT, pelo governo, aceitam candidamente que o MCTI canalize essas verbas para atender aos contratos de gestão que assinou com organizações sociais privadas e que se autodeclaram “sem fins lucrativos”.
Não há nenhum registro de que os “cientistas/sindicalistas tenham protestado ou votado contra a decisão do MCTI de sumir com os recursos em programas duvidosos de organizações sociais.
Mas este blog adoraria ver o governo canalizar uma pequena parte do FNDCT para a retomada das operações da Ceitec. Com certeza haveria uma gritaria generalizada desses mesmos cientistas/sindicalistas, com direito a notas de repúdio e “lives” promovidas pela ONG do presidente da Finep, Celso Pansera.