Enviesado

Por Jeovani Salomão*   A mente humana tem o incrível poder de interpretar os fatos de maneira a sustentar suas próprias crenças pré-estabelecidas. Por esta razão, pessoas que possuem pensamentos diferentes, ou até opostos, podem olhar para um acontecimento igual e, ainda assim, se utilizar dele para defender pontos de vistas diversos.

Quem gosta da carreira comercial, possivelmente, conhece esta antiga história:

Dois vendedores de sapatos foram transferidos para explorar o potencial de mercado de aldeias na África. Após visita e análise, o primeiro passou a seguinte mensagem:

“Recomendo não investir na região. Impossível vender, aqui ninguém usa sapato”

Já o segundo, sob circunstâncias exatamente iguais, emitiu parecer diferente:

“Vamos investir imediatamente. A região tem imenso potencial, afinal ninguém aqui usa sapato”.

Mais comum e conhecida, talvez seja a história do copo meio-cheio ou meio-vazio, quando se observa um recipiente que possui líquido até a metade. Em qualquer um dos casos, o essencial é a produção de argumentos favoráveis a teses distintas tendo como base um fato único. Talvez, se o leitor se permitir conviver com pessoas que possuem pensamentos antagônicos, poderá averiguar tal comportamento na prática. A mesma notícia servirá, em alguma medida, de argumento para ambos, mesmo que as defesas de pensamento sejam diametralmente opostas.

Muitas explicações podem ser dadas para o fenômeno, a que eu prefiro é aquela abordada no livro de Anthony Robins, “Desperte seu gigante interior”, afirmando que vemos o mundo por intermédio de filtros pessoais únicos. Se o universo fosse apenas sobre cores e um indivíduo adorasse o verde, bastaria colocar uma lente de contato que fizesse a exclusão das outras cores. Ele veria tudo na sua cor preferida e, para ele, qualquer outra concepção de cor seria inconcebível; delírios de pessoas que não possuem bom gosto.

Inegável os inúmeros benefícios trazidos pelas redes sociais. Por meio delas, conseguimos mobilizar pessoas em causas comuns, reencontrar amigos de infância, arrecadar donativos para pessoas carentes, compartilhar momentos felizes, transmitir mensagens de otimismo e fé. No documentário “O Dilema das redes”, apesar de reconhecer o lado bom mencionado, ex-colaboradores influentes das big techs contam os riscos e malefícios causados pelo uso excessivo das plataformas. O mais importante a ser compreendido, é justamente o fato de que manter cada vez mais pessoas conectadas é o objetivo das grandes empresas de tecnologia. Quanto mais público, por mais tempo, mais dados, melhor a compreensão do interesse de consumo, mais propagandas e mais dinheiro.

Apesar do cérebro poder interpretar quase qualquer coisa a favor das próprias crenças, é muito mais confortável receber informações com o viés compatível com aquilo que você acredita. Sendo assim, o maior esforço dos algoritmos é enviesar a escolha dos postsque aparecem para o usuário, de forma que correspondam da melhor maneira possível com aquilo que ele gostaria de receber como informação. Quanto mais parecido com sua linha de pensamento, mais interação, mais engajamento, maior o tempo de permanência. Os algoritmos das redes sociais possuem o desafio de viciar os internautas e estão sendo muito bem-sucedidos.

Uma compreensão aprofundada do assunto foi apresentada na aula magna da PUC-SP, em 24/08 do corrente: “As múltiplas dimensões dos algoritmos”, ministrada pelo Dr. Virgílio Almeida, professor emérito da UFMG e integrante da Berkman Klein Certer for Internet and Society (Harvard), o qual tive o imenso prazer de conhecer quando ocupou papel de destaque no Ministério da Ciência e Tecnologia. A íntegra do conteúdo, que recomendo de maneira enfática,  está disponível no Youtube, inclusive com a participação especial de um dos maiores ícones da Internet brasileira Demi Getschko, presidente do NIC.br e eterno integrante do Comitê Gestor da Internet do Brasil.

Dentre muitos esclarecimentos, fica evidente que a estratégia utilizada pelos algoritmos é individualizada e livre de viés próprio. O direcionamento é construído segundo o perfil de cada usuário, de acordo com aquilo que ele possui mais afinidade, gerando uma ampliação da chance do mesmo repetir os próprios pensamentos ou comportamentos. Um indivíduo que se mantém mais conectado quando recebe e compartilha informações de otimismo, vai reforçar seu conjunto de crenças, pelas escolhas que o algoritmo faz para ele, espalhando mais otimismo. Por outro lado,  se o internauta tiver alguma tendência homofóbica, as redes não farão um filtro de ética, vão mandar postagens que acentuem o comportamento inadequado, o que pode ser péssimo para a sociedade.

Em resumo, o usuário vai sendo rodeado de um universo artificial onde todos pensam como ele, defendem as mesmas ideias e apreciam os pensamentos (iguais aos seus) uns dos outros. A mente fica absolutamente confortável, pois não há provocações severas sobre o contraditório. Infelizmente, quando estes mesmos indivíduos voltam para seus mundos reais, precisam conviver com familiares, colegas de lazer e trabalho os quais não foram devidamente disciplinados pelos algoritmos. Surge então a acentuação do efeito da polarização que acaba levando a desentendimentos e rompimentos. Afinal, como o outro pode se recusar a compreender as verdades tão evidentes proferidas, defendidas e propagadas pelo próprio e seu grupo de afinidade.

Não creio que as grandes corporações, por si próprias, irão interferir neste processo, uma vez que está ótimo da forma como está. Cada vez mais usuários, que gastam mais tempo nas plataformas e que geram riquezas crescentes para os acionistas. A solução, que deve passar forçosamente pela limitação das escolhas feitas pelos algoritmos considerando questões éticas, sociológicas, filosóficas e humanistas, deve vir de regulação externa, seja de governos seja de entes multilaterais.

Mesmo em um tempo de evoluções exponenciais, ainda estamos distantes de intervenções como esta, levando-se em conta, dentre tantos fatores, o poder já gigante e cada vez maior das big techs. Neste ínterim, precisamos de um esforço individual, que embora seja difícil de se executar, tem potencial de preservar relacionamentos relevantes e trazer uma vida mais equilibrada. Por mais que sua verdade pareça “A VERDADE”, antes de rotular, insultar e romper relações, lembre-se que a verdade do outro,  para ele, é tão verdadeira quanto a sua para você.

*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.