Do binário ao irracional

Por Jeovani Salomão* – Os conhecimentos sobre a matemática começaram a ser explorados pelo homem desde a savana. Antes de contar, propriamente falando, quantificar já era uma prática comum, seja para caçar, coletar ou avaliar a proporção de potenciais atacantes de uma tribo inimiga em relação aos aliados. Quando a civilização começou a se fixar, em função da pecuária e da agricultura, a aritmética básica teve seu início com a contagem dos rebanhos por meio de pedras.

Neste momento do tempo, entre 12 e 10 mil A.C., as correlações ainda eram muito básicas, para cada pedra um animal. Não se sabe precisamente como e quanto a ciência se desenvolveu em cada região, até porque isto ocorreu de forma muito lenta, tampouco como as culturas diversas se influenciaram.

Até chegarmos aonde estamos, houve uma verdadeira jornada de construção de conhecimento. Alguns aspectos que para nós são triviais hoje, como por exemplo o uso de um sistema com 10 algarismos ou a figura do “0”, levaram séculos para se estabelecer. Os números, tais quais conhecemos, são denominados algarismos indo-arábicos. A referência aos indianos, feita exatamente pela criação e inserção do “0”, que ocorreu, surpreendentemente, mais de 1.000 anos depois dos números de 1 a 9. Talvez a explicação se deva a abstração necessária para se chegar a este conceito.

A notação decimal é tão comum nos dias de hoje que qualquer pessoa sabe que “239” representa um único número e que os algarismos, em função de sua posição, possuem ordem de grandeza diferente. Neste caso, o “2” vale muito mais que o “9”, apesar de o algarismo “9”, isoladamente, ser mais de 4 vezes maior que o algarismo “2”.

Certamente, o fato de termos um sistema decimal deve-se à quantidade de dedos da nossa mão. Se fossem 12, por hipótese, estaríamos acostumados a contar de outra forma:

“0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 A B

10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 1A 1B

20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 2A 2B …”

As implicações seriam significativas. Se a mudança fosse efetuada hoje, abruptamente, teríamos que reaprender a aritmética básica. Por exemplo, 9 + 5, ao invés de 14, seria 12! Neste sistema duodecimal, ou de base-12, que a propósito foi inventado pelos mesopotâmicos e não por mim, você seria capaz de dizer quanto é 19 x 19?

Parece uma verdadeira loucura conviver com dois sistemas de numeração paralelamente, mas isto já acontece hoje de forma muito natural, embora pouco perceptível. Tudo começou nos primórdios da computação, quando era necessário se relacionar com as máquinas originais. A matemática, para quem nunca pensou no assunto, é também uma linguagem. Justamente por meio dela, que a interface com os primeiros dispositivos computacionais se estabeleceu. Ao invés de um sistema com 10 algarismos, fez-se a opção por um sistema com apenas 2, chamado binário, pela facilidade de se representar desligado e ligado, respectivamente, 0 e 1.

“ 0 1

10 11

100 101

110 111 ….”

Cada vez que se retrata um algarismo no computador, utilizando-se o sistema binário, 0 ou 1, temos um “bit”. 8 algarismos (“bits”) formam um “byte”, de maneira que agora já é possível desvendar o que significam aqueles números que indicam a capacidade de armazenamento do celular ou do computador que você utiliza.

Embora esta representação simples – ligado ou desligado – seja de grande valia no campo da tecnologia da informação e tenha possibilitado tantos avanços, ela é extremamente pobre para a interpretação das complexidades da vida. O maniqueísmo, qualquer visão do mundo que o divide em poderes opostos e incompatíveis, serve apenas para situações específicas e reducionistas. Na infância, é importante que as crianças aprendam que o bem é bom e que o mal é mau. Na vida adulta, este mesmo indivíduo, no entanto, precisa compreender que a realidade não é apenas delineada em preto e branco, existem muitos matizes de cinza, sem contar com todo espectro de outras cores.

Pensamentos maniqueístas ou binários são incapazes de resolver a maior parte das situações do dia a dia e, muito menos, dilemas mais complexos. Apenas para contextualizar com uma situação extrema, partiremos de um conceito comum: matar é errado! Fere os princípios mais básicos da humanidade, o mais profundo do nosso ser impõe preservar a vida. Em uma situação fictícia, imagine-se na direção de um trem, em alta velocidade, que se aproxima de uma bifurcação. Você tem o controle sobre que caminho tomar. De forma surpreendente e inesperada, ao se aproximar da escolha de ir para a direita ou para a esquerda, descobre que há uma manifestação que invadiu os trilhos. Não há tempo de frear. Se você for para a direita, estima-se que vai atingir 50 pessoas, para a esquerda, a concentração de pessoas é menor e talvez você atinja apenas 20. Para que lado você vai?

A complexidade da situação é enorme por um ângulo, uma vez que qualquer decisão levará você a fazer algo totalmente contrário ao que é certo: matar pessoas. Por um outro ponto de vista, parece simples decidir que é melhor matar 20 do que 50, por mais dolorido que isto seja.

Então, com o coração saindo pela boca, você está prestes a ir pela esquerda quando, na última fração de segundo antes da decisão, descobre que o seu filho está deste lado. E agora, 20 e seu filho ou 50? Caso você queira me julgar, vou me submeter e aceitar seu pensamento, mas eu tomaria o caminho da direita.

Por sorte, as situações cotidianas não são tão agudas, mas resta evidente que a simplicidade do certo ou errado, não é suficiente para obter o discernimento necessário que leva a uma vida plena. Ainda assim, tenho tido a tristeza de acompanhar pessoas inteligentes tomadas pela polarização política que assola nosso país. Alguns, com capacidade de avaliar o contexto racionalmente, têm tomado o caminho maniqueísta. Se é feito por fulano, independentemente do que seja, é bom, se foi feito contra fulano, não importa a qualidade do ato, é ruim. O binário, tão útil para as evoluções tecnológicas, infelizmente, está conduzindo indivíduos instruídos à ignorância.

 *Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.