Por Jeovani Salomão* – A falta de oxigênio em Manaus foi uma tragédia. Eu teria acompanhado pela mídia e ficaria sensibilizado, como a maioria dos brasileiros o fez. Mas o meu caso foi mais dramático. O filho de um amigo, a bem da verdade sou amigo da família toda, inclusive do paciente, estava internado, com COVID, justo nessas condições temerárias. Apesar do quadro ainda requerer cuidados, a fase mais crítica já foi superada e rogo para que, em breve, ele já esteja completamente recuperado.
A situação da cidade chegou a um nível tão crítico, que seria leviano atribuir o problema a um fator único. As administrações municipal, estadual e federal não podem se esquivar dos equívocos graves que cometeram. Não há desculpas, não se pode terceirizar a culpa ou empurrar para outros as responsabilidades. Ocorreu um conjunto sério de erros e, quem sabe, de desvios éticos e morais. Assim que o episódio for superado, é necessário que se faça um diagnóstico rigoroso do ocorrido e, além de medidas para prevenir situações futuras como a atual, deve-se penalizar a quem de direito.
Um dos fatores que pesaram no episódio, e ele foi alegado pelas autoridades em tom de justificativa, é a questão logística. Inegável que a localização da capital amazonense é um desafio para qualquer projeto de distribuição. Isso me traz conexões com o anúncio de despedida da Ford.
Vivemos em um país continental, separados por distâncias e elementos geográficos significativos, se pensarmos na totalidade do nosso território. Nesse cenário, sob qualquer tipo de análise, não seria racional ter como base da nossa movimentação de cargas o modal rodoviário. Segundo os dados da Confederação Nacional de Transporte, o transporte rodoviário é responsável por 61,1% das cargas, contra apenas 20,7% do ferroviário e 13,6% do aquaviário. Essa é uma das heranças malditas da indústria automobilística no Brasil.
Desde 1951, governo Vargas, até hoje, o país deve ter investido trilhões de reais em subsídios e incentivos para trazer as montadoras internacionais para nossas terras. Os investimentos sempre foram gigantescos, ao contrário do retorno que sempre foi pífio. Nos escravizamos em um modal inadequado para nossa geografia, praticamente não geramos nenhuma tecnologia local e as exportações de veículos nunca foram significativas para a balança comercial. Políticas e recursos públicos foram negados a diversos setores para fomentar essa indústria. O antigo Ministério da Indústria e Comércio, cujos ministros sempre tiveram forte relações com o setor, deveria se chamar Ministério do Carro (ou do Caro!).
Em um momento que o Brasil necessita de retomada econômica, vem a Ford e diz que está saindo do país. E assim deve ocorrer com outras e, espero, que ocorra em um volume suficiente para que os governos, no plural porque os estados também entraram nessa onda, possam refletir sobre as políticas públicas onde se meteram. Dinheiro público não pode gerar apenas emprego, tem que gerar riqueza e tecnologia nacional.
Enquanto comemoramos a chegada da vacina, não podemos parar de refletir sobre o que aconteceu até agora. Em que política pública estamos investindo? Vamos imunizar a população, ótimo; mas vamos criar independência (ou interdependência) tecnológica ou vamos continuar dependendo de outros países? Na próxima crise viral, nossos institutos serão protagonistas ou coadjuvantes na produção de soluções?
Sem conhecer os detalhes, que imagino sejam bastante complexos, tive uma sensação desagradável quando vi o Brasil ficar de “pires na mão” pedindo doses de vacina para Índia, que negou nossa requisição. É constrangedor, também, ver a competição entre Estados e a União. É ainda pior ver pessoas se posicionando contra a vacina, alegando a “baixa” eficiência, por uma questão de viés político.
Para quem ainda não compreendeu, a vacina tem possibilidade de produzir efeitos diferentes. Em alguns, a imunidade, em outros, a redução dos sintomas. Há indícios que as principais do mundo, incluindo Coronavac, AstroSeneca e Pfizer, possuem 100% de chance de prevenir os casos mais severos. Ou seja, quem for vacinado, terá no máximo, sintomas leves. Então, além de reduzir a quantidade de infectados, desafogando a estrutura hospitalar e diminuindo o ritmo de contaminação, a imunização reduz praticamente a zero os casos de morte pela doença. Espero que os dois episódios, retratados no texto do artigo, permitam reflexões para a importância do pensamento estratégico do país. Que os trilhões investidos da indústria automobilística sejam canalizados para os outros modais, especialmente o ferroviário e o hidroviário, com o cuidado de gerar tecnologia local. Ao passo que os bilhões investidos com as vacinas sirvam não somente para o bem da saúde pública, mas que gerem melhores condições para o desenvolvimento da ciência médica e biológica do Brasil.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.