
O governo brasileiro decidiu impor direito antidumping definitivo por até cinco anos às importações brasileiras de fibras ópticas monomodo originárias da China, com alíquota específica de US$ 47,46 por quilograma. A Resolução Gecex nº 829, contendo a decisão, foi publicada hoje ( 22) no Diário Oficial da União. Fibras ópticas monomodo são a base das redes de telecomunicações de longa distância, como backbones de internet, redes metropolitanas, cabos submarinos e infraestruturas críticas de data centers, 5G e computação em nuvem.
Por trás do texto enxuto e técnico da resolução, o anexo publicado junto com a norma expõe que o processo foi muito mais do que uma disputa clássica sobre dumping. Teve os requintes de uma briga comercial com direito até a dedo no olho. O relatório deixou rastros de um briga em que o uso da tecnologia, de dados públicos e inteligência artificial, aparecem como armas retóricas e operacionais na disputa entre as empresas. Os resultados, nada agradáveis, abrem uma brecha para discussões futuras sobre governança de dados na Administração Pública, e a utilização dos mesmos para fins de auditoria e critérios de admissibilidade de evidências em processos de defesa comercial. Sobretudo, se for comprovado futuramente que a Inteligência Artificial pode driblar o acesso às bases de dados governamentais.
O processo nasce de petição protocolada em 30 de abril de 2024 pela Prysmian Cabos e Sistemas do Brasil, que aponta prática desleal, dano e nexo causal. O governo Chinês foi notificado do processo, assim como importadores interessados na disputa comercial.
A primeira fratura política do caso aparece no próprio método. Produtores e exportadores chineses não responderam aos questionários. Na prática, isso empurra a apuração para o terreno da chamada melhor informação disponível, aumentando a margem de manobra da autoridade investigadora e reduzindo a capacidade de contraditório técnico do lado da origem. O resultado final incorpora esse cenário: o DECOM apura margem de dumping para a China equivalente a US$ 47,46 por quilo, ou 75,8%, tomando como período de investigação janeiro a dezembro de 2023. A decisão comercial acompanha o diagnóstico, com recomendação para aplicação de um direito equivalente.
É nesse ponto que a decisão deixa de ser apenas uma medida de defesa comercial e passa a revelar uma disputa de narrativa sobre soberania produtiva e custo de rede. A China tenta deslocar o debate para a tese do abastecimento. No registro das manifestações, a CCCME, entidade habilitada como parte interessada, pede encerramento da investigação e sustenta que a importação seria estruturalmente necessária ao mercado brasileiro, que haveria demanda não atendida pela produção local e que o dano alegado não poderia ser atribuído ao produto chinês.
Importadores reforçaram a tese com números e argumentos sobre capacidade e consumo cativo, alegando que a indústria doméstica priorizaria a própria produção de cabos e deixaria oferta limitada ao mercado, empurrando o restante da demanda para importação.
Do outro lado, a indústria doméstica respondeu com o argumento clássico e com um recado político. O clássico é que a legislação não exige que o produtor nacional abasteça integralmente o mercado para fazer jus à proteção antidumping e que o foco deve ser a prática desleal e o dano material. O recado político é que a discussão sobre dependência externa não pode servir como salvo conduto para preços considerados artificialmente baixos, sobretudo num insumo que estrutura a expansão de redes. A Prysmian e a Furukawa contestaram as críticas de qualidade e sustentam que produzem fibras compatíveis com a demanda, com dados validados por verificação in loco, etapa registrada no anexo como tendo ocorrido nas instalações da peticionária em outubro de 2024.
IA virou munição para a guerra
A dimensão mais sensível do relatório, porém, não está nos percentuais nem na engenharia de cálculo, mas na degradação explícita do contencioso. Em maio de 2025, uma importadora alega fato superveniente e tenta desqualificar a peticionária com base em importações realizadas pela própria indústria doméstica. Em junho, a resposta da Prysmian vai além do mérito econômico e aciona um tema que vira munição de reputação.
A empresa afirma que as importações já eram reportadas desde o início e que não há vedação automática à condição de produtor doméstico por esse motivo. Mas acrescenta um ataque que muda o tom da controvérsia: acusa a parte adversária de usar ferramentas de inteligência artificial para burlar restrições de acesso do ComexStat. Nesse trecho ficou escancarado um novo tipo de guerra processual em defesa comercial, em que a disputa por dados, acesso e rastreabilidade se mistura a acusações de contorno tecnológico de barreiras informacionais do Estado. A IA acabou virando vilã no processo.
Governança de dados
Esse ponto é particularmente explosivo porque se conecta ao debate contemporâneo sobre governança de dados públicos. O ComexStat é uma vitrine de estatísticas de comércio exterior, mas o controle de acesso e as limitações de consulta existem para preservar integridade do serviço, evitar raspagens massivas e impedir assimetrias na exploração de bases públicas. Quando uma parte acusa a outra de contornar esses mecanismos com automação baseada em IA, a discussão deixa de ser apenas sobre preço e passa a envolver confiança institucional. A consequência indireta é óbvia: processos administrativos já tensos podem ganhar uma camada adicional de judicialização, e foi o que ocorreu, com questionamentos sobre validade de evidências e disputas sobre como dados públicos foram obtidos, processados e apresentados.
No mérito econômico, o relatório sustenta o nexo causal com base na dinâmica de preços e na evolução do mercado, registrando subcotação do produto importado investigado ao longo do período analisado e indicando que a pressão competitiva persistiria mesmo sem determinados mecanismos tarifários. O texto também aponta oscilações de consumo nacional aparente e contextualiza como esse comportamento se relaciona com o desempenho da indústria doméstica. A mensagem do governo, ao final, é a de que dumping, dano e nexo se mantêm, apesar das tentativas de atribuir a deterioração a outros fatores.
Há ainda um pano de fundo relevante que ajuda a entender por que a disputa ficou tão carregada. O anexo registra que partes interessadas mencionaram uma elevação do imposto de importação para fibras ópticas em 2024, usada como argumento para dizer que medidas adicionais seriam desnecessárias na fase preliminar. Essa referência mostra que o caso transita entre duas agendas que nem sempre se alinham. De um lado, política tarifária geral, que pode ser ajustada por governo e por conjuntura. De outro, antidumping, que é um instrumento calibrado por metodologia de investigação e tende a ter peso mais forte e duração mais longa. Ao optar pelo antidumping definitivo, a Gecex sinaliza que não trata o tema como simples ajuste de tarifa, mas como resposta a prática desleal com impacto estrutural no mercado.
O efeito prático imediato é o encarecimento do insumo importado chinês para quem depende desse suprimento, com reflexos potenciais em custos de projetos de rede, integradores e fabricantes de cabos que compram fibra no mercado. O efeito político é mais amplo: o governo passa a operar uma proteção mais robusta para o elo doméstico da cadeia de fibras e cabos em um momento em que o discurso público cobra simultaneamente expansão acelerada de infraestrutura e redução de dependência externa.







