Por Jeovani Salomão* – “Não tenho certeza de nada, mas a visão das estrelas me faz sonhar.” (Vincent Van Gogh)
Os Jetsons, um desenho da década de 1960, trouxe para a tela uma diversidade de inovações tecnológicas. Algumas delas ainda são distantes da nossa realidade, como o caso dos carros voadores, das máquinas de auto-higiene e dos prédios flutuantes. Outras tantas já se materializaram, como é o caso das compras em supermercados sem atendente, dos robôs auxiliando em tarefas humanas, dos assistentes personalizados e da biometria facial.
Uma das que mais me impressionava, no entanto, era a que permitia ligações por vídeo. Enquanto criança, assistindo aos episódios, eu imaginava o quanto seria espetacular poder ver meu interlocutor, independentemente da distância. Pensava, também, que em algumas situações isso poderia ser constrangedor, por revelar ao outro cenas indesejadas. Curiosamente, mesmo após a disseminação da tecnologia por meio dos celulares, a prática se consolidou exclusivamente durante a pandemia. Por várias razões, digitar textos nos aplicativos de mensageria sempre foi mais popular do que fazer chamadas de qualquer outro tipo.
O ingresso das inovações em nosso cotidiano tem trazido diversos dilemas inéditos. Respeitar os mais velhos, não interromper enquanto o outro está falando, ouvir mais do que falar, não gritar e não se utilizar de vocabulário inadequado são exemplos de mantras repetidos por gerações, mas cuja aplicação nas comunicações remotas e multilaterais não é tão trivial.
Provavelmente, você, assim como eu, participa de vários grupos de WhatsApp. Amigos de distintas épocas e atividades, colegas de trabalho e familiares. Os limites dos temas abordados, das formas de manifestação, da quantidade de conteúdos nem sempre são claros. Não raro, pessoas descontentes censuram aqueles que abusam, reprimem temas, saem dos grupos e até rompem relações pessoais por divergências de entendimento. Em alguns grupos as relações entre os participantes são equivalentes, mas, em outros, alguns membros possuem um papel de liderança reconhecido, o que gera obrigações. Nas diversas entidades – empresarias, de representação coletiva ou de entretenimento – das quais fui presidente, sempre tive que conviver com a responsabilidade de mediar aglomerações virtuais. Dependendo do tema, a explosão das mensagens ocorre em minutos, levando a situações de risco para o relacionamento futuro das pessoas envolvidas e, por consequência, para a saúde da comunidade. Intervenções são difíceis, contudo, absolutamente necessárias.
Outra cena que se tornou comum são as abordagens através de listas de distribuição. Para quem não conhece o recurso, é possível remeter a mesma mensagem, nos aplicativos de mensageria, para várias pessoas simultaneamente. A questão é: qual a obrigação daquele que recebe uma mensagem padronizada e largamente distribuída? Será que, por educação, deve dar retorno sempre, mesmo que seja apenas com um emoji. Será que é falta de educação não responder. Talvez seja polido pedir para ser excluído da lista ou isso pode ferir os sentimentos do amigo?
Uma situação corriqueira, mas completamente nova, ocorre quando alguém está no processo de digitar uma mensagem. Para quem presta atenção nos aplicativos de mensageria, sabe que, nesse momento, aparece no próprio celular uma indicação de que o outro está “digitando”. E agora, o que fazer? Seria o mais adequado aguardar que o outro se manifeste ou simplesmente escrever aquilo que você pretende escrever? Quando o debate está acalorado, não é uma decisão trivial.
As reuniões virtuais, principalmente aquelas com vários participantes, é outra fonte de dilemas. É difícil, por exemplo, identificar se os interlocutores estão olhando para sua apresentação, ou se estão mirando a tela para jogar paciência. Parecem concentrados, e talvez até estejam, porém não necessariamente naquilo que é o tema do encontro. A princípio, poderia se argumentar que a polidez e os bons modos apontam para a presença integral, mas, na prática, chegam e-mails e mensagens urgentes, as pessoas ficam entediadas, alguém da família invade o ambiente e o desafio está gerado.
Do lado positivo, um hábito que está se consolidando é o da pontualidade. As reuniões virtuais estão tornando esse comportamento parte da cultura. Isso porque, muitas agendas estão sendo efetuadas de maneira consecutiva e atrasar causa um efeito dominó. A fala comum é que se ganhou bastante tempo com o home office. No entanto, é estranho, quiçá incompatível com o tal ganho, que as pessoas estejam trabalhando muito mais. Tomara que a verdade seja que a produtividade geral tenha aumentado de forma significativa e não que se esteja trabalhando mais horas e se obtendo menos.
Até a evolução dos equipamentos está provocando situações inusitadas. Alguns designers de celulares, sabe-se lá por qual razão, tiveram a genial ideia de se utilizar da mesma entrada que serve para carregar os aparelhos para, também, conectar fones de ouvido. Se algum dia, como aconteceu com a editora Lidyane Lima, você estiver com a bateria acabando enquanto participa de uma reunião de negócios, é possível que os bons costumes não prevaleçam em suas palavras para aqueles que fizeram essa modificação.
Em 11/02/2021, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não há amparo na Constituição para o chamado “Direito de Esquecimento”, esse sim, um dilema sério. Fatos obtidos de forma legal não podem ser suprimidos de qualquer mídia pelo simples pedido do protagonista. Em um mundo cada vez mais hiperconectado, isso significa, em poucas palavras, que você pode se esquecer, mas a internet não. A vida de cada indivíduo será progressivamente mais registrada, mais exposta, mais pública. Talvez seja o momento adequado para enfatizar os velhos e bons ensinamentos quanto à educação, ao respeito pelo próximo, ao comedimento e ao bom comportamento social.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.