A Fundação Lemann fez a sua primeira investida de aproximação com o governo nos debates sobre conectividade nas escolas públicas em 2021, durante o Governo Bolsonaro, quando assinou um “acordo de cooperação técnica (nº13/2021)” com a Anatel, na época sob a gestão do então presidente, Leonardo Euler de Moraes. O acordo abriria todas as bases de dados da agência para a fundação, de forma que pudesse criar um “estudo” sobre conectividade das escolas.
Esse estudo tinha a clara intenção de credenciar a fundação como a principal “mentora” do governo na criação de uma “Estratégia Nacional de Educação Conectada”, programa que foi lançado pelos Ministérios da Educação e Comunicações na semana passada com a presença do presidente Lula.
O acordo com a Anatel deixou rastros documentais que indicam claramente o interesse da fundação em ditar o modelo de política de conectividade que ainda viria a ser criado pelo governo após o leilão do 5G.
Ele foi assinado eletronicamente em 28 de outubro de 2021 pelo então presidente da Anatel, Leonardo Euler de Morais (Foto), além do conselheiro Emmanoel Campelo de Souza Pereira, que ainda estava na agência. Emmanoel foi o relator da revisão do Edital do Leilão do 5G contestado pelo Tribunal de Contas da União, que exigiu investimentos em conectividade das escolas com o dinheiro obtido na venda das frequências através de um leilão “não arrecadatório”. Pela Fundação Lemann assinou Camila Cardoso Pereira.
A “parceria” da fundação com a Anatel tornou-se pública na edição do Diário Oficial da União do dia 4 de novembro/21, mesmo dia em que Leonardo Euler concluiu o seu mandato de conselheiro e presidente da agência reguladora das telecomunicações.
Só que o acordo não durou mais que uma semana, após análise dos demais diretores. Ao que parece, Leonardo Euler e Emmanoel Campelo teriam fechado um acordo sem a anuência prévia dos demais conselheiros. Isso levou a agência a decidir encerrar o recém contrato assinado.
O cancelamento pela Anatel ocorreu apenas seis dias após a saída de Leonardo Euler da direção da agência, no dia 10 de novembro/21, quando os demais conselheiros se reuniram em circuito deliberativo e resolveram dar um fim na parceria com a Fundação Lemann que nem começara. O único voto contrário ao cancelamento foi o do conselheiro Emmanoel Campelo (foto), o mesmo que havia assinado o acordo junto com o ex-presidente da Anatel Leonardo Euler de Morais.
O malogrado acordo de cooperação com a Fundação Lemann foi marcado por uma estranha rapidez na movimentação do processo, que é bastante incomum para os padrões da agência reguladora. Começou no dia 20 de agosto e terminou no dia 10 de novembro. As razões para essa intempestiva mudança de posição somente os conselheiros da Anatel podem explicar.
Tentativa de influência
O acordo acabou se tornando no primeiro Indício concreto até agora, de que há, sim, uma intenção da Fundação Lemann – consorciada com outras entidades já listadas por esse blog – de interferir na destinação dos quase R$ 8 bilhões orçados para a conexão de escolas até 2026 (mais de 139 mil).
A denúncia inicial foi feita pelo jornal O Estado de São Paulo. Este blog apenas discorda de que Lemann somente agora esteja tentando no Governo Lula interferir na destinação dos recursos. Correspondência (oficio) que o CEO da Fundação, Denis Fernando Mizne (foto) endereçou à Anatel no dia 20 de agosto de 2021, mostra claramente que essa intenção já existia desde o Governo Bolsonaro.
O documento deu o início às conversações que culminaram com o fechamento do acordo de cooperação técnica descrito acima, mas que depois terminou intempestivamente cancelado. (Veja o conteúdo da carta/oficio da Fundação Lemann no seguinte link: https://capitaldigital.com.br/wp-content/uploads/2023/10/Oficio_Anatel__1_.pdf)
A proposta feita pela Fundação Lemann à Anatel visava as seguintes atividades:
1 – Apoio ao aperfeiçoamento do modelo de mapeamento dos estabelecimentos de ensino brasileiros, listados no Censo Escolar, sem conectividade, ou com conectividade limitada, a serviços de banda larga de alto valor agregado, habilitador de aplicações educacionais avançadas;
2 – Desenvolvimento de estratégias de priorização de medidas alocativas de recursos de conectividade, visando o maior impacto social e econômico, em linha com as expectativas de políticas públicas;
3 – Apoio na estruturação de soluções voltadas à conectividade da última milha e soluções indoor para conectividade integral dos estabelecimentos de ensino, em complemento à disponibilização de infraestruturas até o Ponto de Interconexão, incluindo análises sobre custos de conexão de escolas, políticas públicas e modelos de contratação de conexão que podem viabilizar o financiamento desses custos;
4 – Desenvolvimento da interlocução das iniciativas acima indicadas com ações de literacia digital de alunos, educadores e gestores;
5 – Compartilhamento de dados e referências analíticas para fins de aprimoramento, acompanhamento e medição de desempenho das iniciativas de conectividade.
O ofício da Fundação Lemann deixou claro que havia uma intenção dela em querer influenciar nas futuras decisões do governo. Sobre como gastar o dinheiro através da “priorização de medidas alocativas de recursos de conectividade, visando o maior impacto social e econômico, em linha com as expectativas de políticas públicas“. Também mostrou o interesse num “apoio na estruturação de soluções voltadas à conectividade da última milha e soluções indoor para conectividade integral dos estabelecimentos de ensino“.
Em português bem claro, isso significava que a Fundação Lemann vinha buscando uma forma de opinar dentro do governo sobre como ele precisa gastar com uma série de serviços de empresas que farão a conexão das escolas. Até em favor da instalação de infraestrutura de rede Wi-Fi interna nas escolas – que a entidade chamou de “ultima milha” – tentou interferir.
Coincidência ou não, a criação dessa rede interna com Wi-Fi está sendo estudada agora no âmbito do Grupo de Acompanhamento do Custeio a Projetos de Conectividade de Escolas. O GAPE é a entidade criada pela Anatel após o leilão do 5G para gerir os R$ 3,1 bilhões que serão pagos pelas operadoras móveis que compraram licenças na frequência de 26 Ghz.
O CEO da Fundação Lemann, Denis Fernando Mizne também é fundador e presidente do conselho do “Instituto Sou da Paz”, além de membro do Conselho da Fundação Roberto Marinho. Portanto, ele sabe exatamente no quê a Fundação Lemann poderia “ajudar o governo” a conectar escolas.
Alternativa MegaEdu
Com o cancelamento do acordo pela Anatel, restou à Fundação Lemann reconstruir uma nova estratégia de abordagem ao governo. Para tentar mais uma vez interferir na criação de futuras políticas públicas de conectividade que começaram a ser realizadas por meio dos recursos do leilão do 5G e do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST). Que juntos chegam a somar quase R$ 8 bilhões e fazem parte do projeto anunciado semana passada no Palácio do Planalto como “Estratégia Nacional de Educação Conectada”.
Sem acesso às bases de dados internas da Anatel, a Fundação Lemann criou a organização social denominada “MegaEdu” e por meio dela seu pessoal passou a trabalhar na montagem de um estudo com apoio do “Boston Consulting Group“. O assédio da fundação ao governo passou então para o Ministério da Educação por intermédio dessa nova entidade.
No sumário executivo tornado público por ela e publicado pelo blog, fica claro que os estudo é um compilado de bases abertas de dados da Anatel (que são públicas), do Inep (Censo Escolar) e de um acordo para conexão de escolas assinado entre a agência reguladora com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) denominado “Projeto C2DB”.
O estudo foi apresentado ao público pela MegaEdu no dia 11 de abril de 2022, conforme publicação em sua página na Internet. O título da notícia era: “Maior Estudo Brasileiro sobre Conectividade nas Escolas Públicas mostra caminhos para levar Internet”.
Neste ponto há um fato curioso. Apesar da MegaEdu se apresentar ao país no dia 11 de abril de 2022 com o novo estudo, que tinha o objetivo ajudar o governo a conectar escolas, ela somente passou a existir oficialmente no dia 4 de outubro de 2022. Foi nessa data que a MegaEdu se tornou “ativa” ao obter o CNPJ na Receita Federal. E graças à esse trabalho a ONG acabou caindo nas graças do Ministério da Educação e das Comunicações. Ambas as pastas passaram supostamente a usá-lo como referência para a criação da “Estratégia Nacional de Educação Conectada”.
Conselho do FUST
A partir daí a Fundação Lemman teve o caminho aberto na virada dos governos Bolsonaro/Lula. Graças à imagem de ter produzido o primeiro estudo concreto sobre conectividade escolar, a MegaEdu ganhou chancela do MEC e o apoio de outras 14 ONGs, para ter este ano um assento privilegiado no Conselho Gestor do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. Este colegiado foi criado pelo Ministério das Comunicações, com a participação de outros ministérios, da Anatel, das empresas de telefonia e três representantes de organizações sociais. O objetivo dele é definir como serão gastos R$ 2,1 bilhões do fundo que se encontram no caixa do BNDES. Dinheiro que está reservado para operações de crédito bastante facilitadas, voltadas a projetos de construção de infraestrutura de redes no país. E já está previsto que parte desse dinheiro deverá ser canalizado para o projeto de criação da nova rede escolar de Internet.
Não há nenhum impedimento legal para que a MegaEdu possa participar do Conselho Gestor do Fust. Nem tampouco esse blog vê algum indício de corrupção. O que está sendo questionado é se ela teria a expertise necessária para estar num fórum que irá discutir para onde vão R$ 2,1 bilhões do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST).
Podem até alegar que a ONG teve o mérito de organizar as informações que estavam espalhadas em diversos bancos dados e transformá-los num estudo, problema que nenhum governo até hoje se preocupou em solucionar. E realmente teve.
Mas isso por si só seria requisito fundamental para garantir à MegaEdu participação em futuras discussões e decisões de governo sobre o uso do dinheiro público para conectividade escolar?
Se for assim, então é de se indagar ao Ministério das Comunicações, por que a “Coalizão Direitos na Rede” não tem assento nesse organismo. Trata-se de uma organização suportada por diversas entidades do terceiro setor que atua há anos na discussão sobre políticas de conectividade e de inclusão digital.
Talvez a única explicação para a Coalizão ter sido barrada e não ter um assento privilegiado no Conselho Gestor do Fust – como tem a MegaEdu – seja o fato dela não ser alinhada a governos. Ao contrário, já “incomodou” vários ao defender posições em favor dos interesses dos brasileiros à uma rede rápida, de qualidade e a preço justo.
O que sempre a fez antagonizar com os interesses das empresas de telefonia e dos provedores de Internet. Dois setores que constantemente estão presentes nas discussões internas do governo, sobretudo quando isso envolver liberação de dinheiro público para a construção de redes.