A partir desta segunda-feira (19), a estatal de semicondutores Ceitec SA começa a demitir quem se opõe à sua extinção. E o primeiro a ir para rua, mesmo sem a empresa ter conseguido aprovar o seu plano de liquidação, foi o ex-porta-voz da ACCEITEC – Associação dos Colaboradores da CEITEC, Júlio Leão (Pós-doc na U.C. Berkeley (EUA), PhD no IMEC (Bélgica), Mestre em Computação e Engenheiro na UFRGS (Brasil), 2500 citações, 7 patentes depositadas e h-index 11):
Tudo na Ceitec vem sendo discutido assim, entre quatro paredes, com o governo tomando decisões sem consultar a sociedade e se livrando de quem o incomoda. Algumas decisões até já foram questionadas pelo Tribunal de Contas da União. A regra tem sido geral com as estatais.
Mas como esse governo não veio para explicar nada à sociedade e conta com a incapacidade do Legislativo de levantar um debate sério sobre os rumos do setor de microeletrônica no Brasil, o projeto segue de vento em popa. No futuro o contribuinte é quem irá indagar como se chegou a esse estágio no Brasil, quando tiver de pagar a conta pela transferência do patrimônio público para os monopólios privados. Quando já tinha pago pela construção de uma política de microeletrônica no Brasil.
Conluio privado
O processo de extinção da Ceitec SA tem cara, cheiro e gosto de conluio publico-privado. Está longe de ser interpretada como alguma busca por “parceria” ou tenha alguma justificativa plausível para o fim da empresa. O discurso da equipe do PPI para analisar a empresa, na busca de parceiros ou compradores, foi construído não para encontrar nenhum dos dois. E, sim, para reforçar o discurso de acabar com o modelo estatal, abrindo o mercado para empresas privadas a partir de alguns contratos que a empresa detém, patentes e pedaços de ativos da Ceitec.
Chega a ser interessante como foi elaborado o “estudo” pelo Ministério da Economia, para discutir o papel da Ceitec SA na política de microeletrônica no Brasil: ouviram um grupo de empresas privadas que não concorda com a presença da estatal no “seu mercado”.
Só que ao falarem mal da Ceitec, essas empresas acabaram expondo a incompetência governamental de ter criado uma empresa com dinheiro público, sem definir nenhuma política de sustentabilidade financeira para ela. Não foi discutido com elas, então, se a Ceitec SA deu errado. O que ficou claro, na voz das empresas, foi que a Ceitec não deu certo, porque o governo nunca soube exatamente o que fazer com ela.
Até sabia, mas na área técnica do Ministério da Ciência e Tecnologia, na Academia ou em toda a cadeia produtiva do conhecimento. Só que estes personagens nunca tiveram voz dentro do governo.
Pelo depoimento das empresas – guardado sob um questionável acordo de sigilo, numa discussão que deveria ser pública – ficou claro que a Ceitec é uma pedra no sapato para elas. Sob argumentos técnicos e mercadológicos questionáveis, trataram de reduzir a importância da estatal para o processo de desenvolvimento tecnológico do país.
Deixaram claro que não topariam serem parceiros dela, como uma estatal. Mas aceitariam, fariam um esforço “patriótico” de adquirirem alguns ativos dela aos pedaços, algumas patentes e as instalções físicas da empresa, caso o governo estivesse disposto a garantir mercado, incentivos fiscais e investisse na atualização tecnológica da companhia primeiro.
Uma espécie de “capitalismo sem risco”, com nítida característica de reserva de mercado.
Abisemi
O depoimento mais contundente contra a existência da Ceitec partiu de quem não se esperava que partisse: Rogério Nunes, presidente da Associação Brasileira de Semicondutores (Abisemi), da qual a Ceitec é integrante, além de dono SMART Modular Technologies Brazil.
Na cara de pau Nunes disse que desejava ajudar o governo a encontrar uma saída para a Ceitec porque estaria assim tentando, “ajudar o setor no Pais, querendo uma saída de sucesso nesse processo”. E lembrou que fazia isso por estar na condição de Presidente da Associação Brasileira de Semicondutores.
Porém, o discurso de Nunes, como comprovado nas declarações que deu aos representantes do governo interessados na extinção da empresa (que o público não sabe pois foi acertado uma “cláusula de sigilo”), teve mais cara de defesa pela retirada da Ceitec do Mercado.
Para a Ceitec continuar existindo Nunes disse o óbvio e que o governo nunca se deu a trabalho de fazer a sua parte, como estimuladora do processo estatal: “criação da demanda será fundamental (controle veicular, identificação pessoal, passaporte, agricultura)”. Ou seja, Rogério Nunes disse ao governo aquilo que o próprio governo já deveria saber.
“O Governo Federal não conseguiu organizar uma demanda cativa para desenvolver a empresa (não soube explicar os motivos, mas acredita que a falta de um parceiro global para as iniciativas fez falta”, relata o documento, sobre a avaliação feita pelo dono da Smart e presidente da Abisemi.
Em alguns ponto o presidente da Abisemi não deixa de ter razão, quando disse que a Ceitec “não terá sucesso se não forem realizados os investimentos necessários para atualiza-la, além de parceria estratégica/ tecnológica com algum player relevante do setor”. A própria Smart ganhou presença no mercado brasileiro após a parceria com a Samsung, um parceiro global.
Em seguida, Nunes traçou o perfil de negócios da Ceitec. As conclusões do questionário que ele respondeu no estudo do governo foram as seguintes:
• RFID – “é um produto muito barato e de pouco valor agregado, sendo que a Smart recusou algumas vezes demandas por conta dos volumes necessários para gerar algum resultado. O entrevistado não vê o RFID como tecnologia estratégica que justifique a manutenção da Cia”.
• Obsolescência – “Entende que os equipamentos da CEITEC não são muito velhos, mas o plantel de equipamentos não se mostrou o melhor do ponto de vista mercadológico (wafer de 6 polegadas). Segundo levantamento do entrevistado, 47% dos equipamentos não teriam condições de uso e os demais 53% poderiam ter um escopo restrito / limitado de uso, focando em nichos de mercado que não requerem tecnologia de ponta. Exemplo poderia ser a produção de câmeras de menor resolução, não para os novos celulares, mas seria necessário investir US$ 50 milhões. Mesmo não sendo um investimento relevante, seria importante definir funding para trazer apelo para o potencial parceiro.“
• Infraestrutura física – “Bastante boa a infraestrutura do prédio. Acha possível o interesse de um investidor se tiver mercado para tal, principalmente se conseguir estruturar produção para exportação. Prédio, instalações e sala limpa são muito bons e são os principais ativos da empresa. Parte do pessoal também tem valor, mas considera a empresa muito inchada (despesas administrativas são elevadas)”.
• Desenho ideal – “Sócio internacional com capacidade tecnológica + funding para investimento + pacote comercial factível (criação de demanda do Governo)”.
• Equipamentos – “Não conseguiu estimar um valor do de comissionamento da planta. Entende que não seria economicamente viável pagar o frete, o seguro e o empacotamento dos equipamentos para transportar para o potencial comprador, tendo em vista o preço que possivelmente conseguiremos na venda dos equipamentos. Mais factível seria buscar Laboratórios, Universidades, Centro de Pesquisa para dar uso aos equipamentos (como doação, mesmo que se paguem impostos para isso)”.
• Mercado – “Lutaria para achar um parceiro se tivesse um PPB especifico e com funding montado. Absorveria parte do time e deslocaria a outra parte para fora da Cia, dado que a estrutura e bastante pesada. Manteria o RFID, mas precisaria de outros produtos de maior valor agregado. Citou a falta de propriedade intelectual como um problema”.
• Parceria – Não toparia a parceria mantendo o modelo de estatal.
• Cadeia tributaria do pais – “afeta muito o setor, mas mesmo assim acha que a CEITEC tem condições de ser competitiva, mas há grande dificuldade da porta para fora da indústria (custo Brasil)”.
• P&D – Sinalizou interesse no cenário de poder gastar os recursos obrigatórios vinculados atualmente pela legislação em investimentos futuros na CEITEC, algo que pode ser pensado como estratégia de abordagem de potenciais investidores.
• Interesse – Perguntou sobre a estratégia do Governo com relação ao ativo: (i) simplesmente quer cortar custos ou (ii) quer buscar alternativas para atrair parceiros. Acha que precisaria de no mínimo 2 anos para amadurecer qualquer projeto com a CEITEC. Não compraria por R$ 1,00 no cenário “As Is”. Poderia pagar um valor positivo caso houvesse estruturação do governo que permitisse funding e expectativa de mercado futura garantidas. Gostariam de construir algo em parceria com o Governo, pois a dinâmica de um Edital pode dificultar um posicionamento deles.
• Venda de ativos – Segregação da Cia em partes e o mais adequado frente a alienação do todo, a não ser que haja essa conjunção de fatores a serem disponibilizados pelo Governo.
• A viabilidade da empresa – passa por algumas condições necessárias de acontecer, tais como:
“Ingresso de um sócio estratégico internacional; disponibilização de funding adequado por parte do Governo para bancar a necessidade de investimento; criação de demanda governamental para alguns produtos ou permissão de utilizar os recursos de investimentos na CEITEC como contraparte da obrigação de investir; saída do sócio governo. Caso ocorressem todos esses fatores, teria desejo de procurar um parceiro para tocar o negocio, mas com grande redução de custos e tentativa de usar a infra e produzir produtos para a própria Smart.
*É ou não é um caso clássico de “capitalismo sem riscos”?