
Por Fabiano Carvalho* – As big techs deixaram de ser apenas ferramentas que facilitam a vida pessoal, organizando dados, rotinas e preferências, e se tornaram parte essencial das rotinas corporativas. Hoje, estão profundamente integradas à forma como documentos são criados, armazenados e acessados dentro das empresas.
Ao longo dos anos, as principais corporações de tecnologia se destacaram pela capacidade de desenvolver inovações tecnológicas com alto valor prático. Suas criações não apenas transformaram o cotidiano individual, mas também foram incorporadas por grandes corporações, impulsionando um movimento global de conectividade e digitalização.
Não é mais possível falar em gestão documental sem mencionar o papel central das big techs na organização informacional, já que elas estão presentes em toda a cadeia: desde o armazenamento de informações em plataformas de computação em nuvem ao tráfego de dados como APIs e protocolos de autenticação.
Como as grandes empresas de tecnologia se especializaram no desenvolvimento de soluções que influenciam a forma como os dados são acessados, organizados e protegidos, pensar em temas como a transformação digital de documentos sem considerar o uso de tecnologias desses negócios há muito deixou de ser uma alternativa.
Administrar manualmente grandes volumes de documentos não é apenas ineficiente — é anacrônico. O processo consome tempo, compromete a governança e eleva significativamente o risco de falhas em controle, rastreabilidade e conformidade. Nesse cenário, as big techs assumem um papel estratégico: suas ferramentas otimizam a gestão documental com auditorias automatizadas, rastreamento em tempo real e camadas robustas de segurança da informação.
Legislação e soberania
Essa presença tecnológica não é periférica: ela integra o coração operacional de organizações que almejam crescimento sustentável e inovação contínua, independentemente do setor. E é exatamente por esse nível de penetração que a regulamentação se torna essencial.
A LGPD, instituída pela Lei nº 13.709/2018, é o marco que define critérios para coleta, processamento, armazenamento e compartilhamento de informações, buscando equilibrar inovação com direitos fundamentais.
Ao tratarmos de dados, especialmente em empresas com base no exterior, torna-se imprescindível considerar questões relacionadas à soberania informacional. Isso se agrava quando os dados estão armazenados em nuvens controladas por empresas sediadas fora do país, o que levanta dúvidas sobre quem, de fato, detém o controle dessas informações.
Um exemplo claro é a Lei CLOUD, legislação dos Estados Unidos que autoriza o governo americano a acessar dados mesmo que estejam fora do território dos EUA, desde que sob controle de empresas americanas. Essa extraterritorialidade evidencia os riscos de dependência tecnológica e jurídica.
Outro ponto de atenção é a limitação à inovação e da autonomia. Soluções locais, de código aberto ou de empresas menores enfrentam dificuldades para competir ou mesmo integrar-se a esses ecossistemas fechados. Isso impõe um desafio real à diversidade tecnológica e à construção de alternativas mais alinhadas com os interesses nacionais.
Oportunidades e equilíbrio
Um estudo intitulado “Contratos, Códigos e Controle: A Influência das Big Techs no Estado Brasileiro”, divulgado em julho de 2025 e realizado por pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo), UnB (Universidade de Brasília) e FGV (Fundação Getúlio Vargas), quantificou a dimensão do mercado nacional de contratação de ferramentas digitais.
Os dados revelam que, nos últimos dois anos e meio, o setor público brasileiro investiu mais de R$ 17 bilhões em licenças, serviços de nuvem e segurança digital. Entre 2023 e junho de 2025, foram contratados R$ 5,97 bilhões em licenças de software, R$ 9 bilhões em soluções de computação em nuvem e R$ 1,91 bilhão em softwares e serviços de segurança, todas categorias estratégicas dominadas por fornecedores estrangeiros.
O estudo também mostra que, de 2014 até o presente ano, o setor público brasileiro gastou cerca de R$ 23 bilhões com licenças de software, soluções em nuvem e aplicações de segurança.
O caminho está no equilíbrio entre inovação e governança. As big techs oferecem, sim, soluções poderosas e de ponta: principalmente no que diz respeito à escalabilidade, à automação via inteligência artificial e à integração entre sistemas. Mas isso não significa que não seja possível adequar os serviços à medida em que novas discussões e necessidades surgem.
Uma abordagem eficiente é adotar modelos híbridos ou multi-cloud, combinando nuvens públicas e privadas. Outra estratégia é buscar fornecedores que ofereçam maior transparência e flexibilidade contratual, além de observar com cuidado onde os dados são armazenados e quem pode acessá-los.
Também é essencial adotar boas práticas de governança de dados: desde a classificação de documentos por nível de sensibilidade até a aplicação de criptografia ponta a ponta, políticas de retenção e auditorias constantes.
É possível e desejável aproveitar os recursos das grandes empresas de tecnologia, mas sempre com uma estratégia clara de proteção, portabilidade e autonomia, atentos às leis e iniciativas voltadas à soberania dos dados.
*Fabiano Carvalho é CEO da Doc Security – empresa de gestão documental, incluindo tecnologias para armazenamento e processamento de arquivos físicos e digitais em empresas e instituições públicas.