
A Receita Federal do Brasil, através da Portaria RFB número 619 de 2025, autorizou o Serpro a compartilhar com empresas privadas, mediante consentimento do cidadão, dados relativos à renda e às restituições do Imposto de Renda das pessoas físicas no âmbito do projeto piloto Conecta+, coordenado pelo Ministério da Gestão e da Inovação. A decisão representa um avanço dentro da estratégia de governo digital, mas também inaugura um ponto de inflexão sobre monetização de dados pessoais.
A partir do momento em que dados fiscais sensíveis passam a circular entre agentes públicos e privados, eventualmente para fins de avaliação de crédito pessoal, mesmo em ambiente controlado, o governo abre um precedente que se conecta de forma direta com a proposta de monetização de dados pessoais que vinha sendo estudada pela Dataprev em parceria com a empresa Drumwave. Ambas tratam do uso econômico de informações individuais sob guarda estatal, ainda que com finalidades distintas.
O Conecta+, integrante do ecossistema Conecta GOV.BR, foi criado para permitir que órgãos públicos troquem informações de forma automática, segura e sem repetição de exigências burocráticas, conforme previsto na Lei 13.726 de 2018 e na Lei 14.129 de 2021. O objetivo é aliviar o cidadão de apresentar documentos que o Estado já possui, reduzir fraudes e erros e promover uma economia de tempo e recursos dentro da administração pública.
A portaria da Receita dá um passo além ao permitir que o Serpro atue como canal de acesso, em fase experimental, para que terceiros obtenham dados de renda mediante consentimento do próprio titular.
Monetização
A decisão acontece no momento em que a Dataprev discute com a Drumwave um modelo de valorização e eventual monetização dos dados pessoais. Nessa proposta, o cidadão poderia autorizar a utilização dos seus dados por terceiros, recebendo uma contrapartida financeira ou de serviços, enquanto o Estado funcionaria como custodiante e curador desses ativos informacionais.
Embora ainda em fase de estudo e sem regulamentação formal, esse tipo de projeto depende justamente da criação de mecanismos técnicos, jurídicos e administrativos que permitam a circulação de dados pessoais sob mediação estatal. A Portaria 619, ainda que limitada ao piloto, fornece parte dessa infraestrutura ao abrir acesso a dados fiscais, que figuram entre os mais protegidos dentro da administração pública.
Em abril deste ano, durante o Web Summit Rio 2025, a estatal e a startup brasileira com sede no Vale do Silício (EUA) anunciaram a parceria. O evento contou com Brittany Kaiser, conselheira da Drumwave e presidente da Own Your Data Foundation, além de Rodrigo Assumpção, presidente da Dataprev, e Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central no Governo Fernando Henrique Cardoso, outro entusiasta da monetização de dados pessoais.
O projeto deveria ter entrado em testes em julho deste ano, mas teve de ser adiado. Porque também em abril estourou o escândalo dos descontos indevidos em benefícios do INSS, que acabou provocando uma CPI em andamento no Congresso Nacional. Não era conveniente lançar um programa de monetização de dados com aposentados e pensionistas do INSS, em meio a um escândalo de corrupção que vinha ocorrendo desde 2019.
A conexão entre o Conecta+ e o projeto Dataprev Drumwave ocorre em três eixos. Primeiro, ambos dependem de consentimento do cidadão como base legal. Segundo, ambos se estruturam sobre o papel do Estado como provedor ou intermediário de dados. Terceiro, ambos abrem caminho para uma lógica na qual informações pessoais passam a ter valor econômico mensurável. Mesmo que a portaria não trate de monetização, ela cria um precedente administrativo que pode facilitar a expansão desse modelo no futuro.
A abertura de dados fiscais, porém, carrega implicações jurídicas profundas. A Lei Geral de Proteção de Dados estabelece que consentimento precisa ser livre, informado e específico. Em relações assimétricas como as do mercado de crédito, há o risco de que o consentimento se torne um requisito formal, mas não verdadeiramente voluntário. Além disso, a LGPD exige que os dados sejam utilizados exclusivamente para a finalidade declarada, o que pode limitar eventuais pressões futuras para ampliar a utilidade dessas informações.
Outro ponto crítico é o sigilo fiscal, previsto no artigo 198 do Código Tributário Nacional. A regra é que informações fiscais não podem ser compartilhadas com terceiros, salvo em hipóteses específicas previstas em lei. A Receita sustenta que o consentimento do titular, aliado às regras da Portaria RFB número 81 de 2021, permite o compartilhamento dentro do Conecta+. Trata se de uma interpretação que ainda pode ser objeto de questionamento jurídico, já que o sigilo fiscal historicamente exige cautela extrema e justificativas normativas robustas.
O papel da ANPD também se torna central. Embora o projeto seja apresentado como piloto, o fato de envolver dados fiscais sensíveis e o compartilhamento com empresas privadas cria uma zona cinzenta de regulação que demanda acompanhamento próximo. A ANPD poderá ter de avaliar se a estrutura de consentimento é suficiente, se há riscos de discriminação algorítmica na concessão de crédito e se o desenho do projeto respeita os princípios de necessidade e minimização da LGPD.
Quanto ao Serpro, a estatal assume uma função estratégica ao operar a interface técnica usada para compartilhamento. Nesse arranjo, passa a ser responsável por garantir a segurança, o rastreamento e a integridade das consultas feitas por terceiros. Isso reforça a necessidade de mecanismos sólidos de auditoria e de governança, especialmente porque incidentes envolvendo dados fiscais podem causar danos significativos e gerar responsabilização administrativa, civil e até penal.
Tanto o Serpro quanto a Drumwave já foram objeto de análise pela ANPD de uma parceria que assinaram em junho de 2022. Na época as duas empresas alegaram para a fiscalização da Autoridade, que não havia “compartilhamento de dados pessoais nessa etapa de cooperação”. A ANPD concluiu o processo alegando que a “sua atuação, nesse momento” era “desnecessária”. Mas ressaltou que, “caso o Serpro, em momento futuro, opte pelo compartilhamento de dados pessoais no âmbito do Acordo, deverá comunicar à Autoridade imediatamente”.
Para a Dataprev, o precedente é igualmente relevante. A empresa discute modelos em que dados previdenciários e cadastrais poderiam ser utilizados como ativos econômicos, sempre mediante consentimento do titular. A experiência inaugurada pela Portaria 619 fornece tanto parâmetros técnicos quanto argumentos jurídicos que podem fortalecer iniciativas nessa direção. Ao legitimar o compartilhamento consentido de dados sensíveis dentro de um ambiente de pilotos, o governo cria uma narrativa de que esse tipo de prática pode ser expandido, desde que amparado por controles regulatórios e finalidades específicas.
Do ponto de vista de riscos, a combinação entre compartilhamento de dados fiscais e propostas de monetização suscita receios sobre discriminação, exclusão financeira, ampliação das desigualdades e dependência de algoritmos pouco transparentes. Cidadãos que optarem por não consentir podem ser prejudicados por não terem seus dados disponíveis para análise de risco, enquanto aqueles que consentirem podem sofrer pressões comerciais explícitas ou implícitas. Esse é um ponto que a LGPD tenta mitigar, mas que depende de supervisão constante de autoridades como a ANPD e o próprio Ministério da Gestão.
A Portaria RFB número 619 já está em vigor. O Ministério da Gestão ainda definirá o período de operação e o número de acessos permitidos. O piloto servirá como laboratório para observar se o governo pretende consolidar uma política de abertura econômica de dados pessoais ou se manterá o modelo em ambiente restrito e experimental. O resultado desse movimento indicará se o Brasil seguirá com uma estratégia mais conservadora de proteção de dados ou se adotará uma abordagem mais próxima ao que Dataprev e Drumwave defendem, com a transformação dos dados dos cidadãos em um ativo negociável dentro da economia digital.







