
É impressionante como uma série de ações que estão sendo tomadas contra a Celepar e os interesses da população, como a entrega de todos os dados dos 11 milhões de paranaenses para a iniciativa privada, estando a estatal privatizada ou não, vem ocorrendo de forma paralela com as estratégias comerciais que estão sendo adotadas no Serpro. O caso mais rumoroso vem ocorrendo com a plataforma Google, que através de contratos de parceria poderão chegar à R$ 600 milhões. Um valor muito parecido com o do Serpro (R$ 700 milhões) para serviços sob demanda.
Entretanto, no caso do Paraná, o Governo Ratinho Júnior, decidiu diferente da estratégia do Serpro, em ter a Google sob a sua bandeira comercial, em detrimento de outras plataformas. Num gabinete do Centro Administrativo do Paraná, decisões técnicas começaram a tomar a forma de contratos que podem pesar bilhões e gerar dependência tecnológica. E num ato de ousadia, transformaram a Companhia de Tecnologia da Informação e Comunicação do Paraná (Celepar) numa espécie de revenda Google. Assim, não importa se der errada a privatização, pois a estatal estará totalmente vinculada às empresas privadas do interesse dos representantes da atual gestão pública.
Para garantir a estratégia, a Celepar — responsável pela infraestrutura digital do Estado — celebrou um contrato para tornar-se distribuidora dos serviços da Google, com ênfase no Google Workspace, e ofertar esses serviços a empresas e órgãos públicos. O desenho, em tese, poderia ser apenas mais um acordo tecnológico.
Mas na prática, revela um atalho que contorna a regra geral do direito público: o procedimento licitatório. A justificativa usada pela estatal — o instituto da “oportunidade de negócio” previsto no art. 28, §3º, II, da Lei 13.303/2016 ( Lei das Estatais) — foi interpretada de forma duvidosa pela administração. Em resposta a consulta formulada pela própria Celepar, o Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) — estabeleceu limites claros e específicos ao uso desse dispositivo. Ao que parece, os limites estabelecidos no acórdão do TCE-PR foram desrespeitados.
O quadro se materializou com contratos já observáveis no palco público: o mais visível é o firmado entre Sanepar (Companhia de Saneamento) e Celepar, no valor de R$ 20.939.616,00, para aquisição do Google Workspace. Esse contrato não é um caso isolado: há indicativos de que o Estado, por orientação da Casa Civil, busca generalizar o modelo, com estimativas que podem ultrapassar R$ 600 milhões caso a adoção se estenda a todas as pastas.
Atalho jurídico
A “oportunidade de negócio” nas estatais existe para hipóteses muito específicas: quando houver exploração conjunta de atividade econômica que justifique a dispensa de procedimento competitivo. O problema não é apenas a interpretação — é o uso flagrante e repetido do instituto em desacordo com a jurisprudência vinculante.
Acórdão 408/25 de consulta formulada pela própria Celepar, o TCE-PR foi categórico: a dispensa de licitação por “oportunidade de negócio” é legítima apenas quando a parceria for uma oportunidade de negócio definida e específica, que beneficie ambos os parceiros; quando as particularidades do parceiro justifiquem a escolha; e quando ficar demonstrada a inviabilidade do procedimento competitivo para explorar aquela atividade. O tribunal vedou, expressamente, a utilização do instituto para a mera revenda de bens ou serviços pela estatal — hipótese em que a estatal age como simples distribuidora e não como parceira econômica.
Em âmbito federal, o TCU consolidou entendimento análogo no Acórdão 2488/18: a inexigibilidade ou dispensa com base em “oportunidade” exige prova robusta da singularidade do parceiro, da exploração conjunta e da inviabilidade de competição. O acórdão reforça requisitos de proporcionalidade, publicidade e justificativa técnica, limitando a margem de interpretação extensiva do dispositivo.
Afronta
Dito de forma direta: a utilização da “oportunidade de negócio” pela Celepar — para justificar a revenda em massa do Google Workspace — não é apenas controversa; constitui afronta às orientações expressas do TCE-PR e do TCU. Esses acórdãos não permitem que a exceção se transforme em regra operacional. Onde os tribunais fixaram critérios restritivos, a estatal escolheu o atalho. Essa escolha não é inocente: tem efeitos imediatos sobre a legalidade dos atos e sobre a segurança jurídica dos contratos subsequentes.
Minutas e o prazo
O caráter alarmante do caso não está apenas na técnica jurídica — está na velocidade com que a máquina pública tentou transformar decisões ainda em debate em fatos consumados. A Celepar, por orientação da Casa Civil, recebeu ordem para acelerar a renovação de contratos com as secretarias e inserir o Google Workspace nas novas minutas, com prazo final estabelecido: 15 de outubro de 2025.
Não é um detalhe protocolar: é um gatilho. Minutas circulantes mostram que o fornecimento do Workspace já aparece consignado nas versões dos contratos. Ou seja: não mais uma opção a ser avaliada por cada órgão, mas cláusula padrão. Em poucas semanas, a administração poderia obrigar secretarias a assumir compromissos operacionais e orçamentários sem ter completado os estudos técnicos imprescindíveis — ETPs, PDTIs, análises de impacto à LGPD, testes de interoperabilidade.
A pressa cria três problemas que se reforçam mutuamente: (1) compressão de tempo para estudos técnicos essenciais, que demandam meses; (2) expansão acelerada do risco de vendor lock-in, ante a assinatura em massa de aditamentos padronizados; (3) formação de uma cadeia de contratos derivados (como o da Sanepar) que ficam sujeitos à contaminação se o contrato-mãe for anulado. Em regimes democráticos, prazos existem — mas quando transformam a exceção em regra e a técnica em urgência política, convertem-se em risco público.
O caso Sanepar
O contrato entre Sanepar e Celepar, por R$ 20.939.616,00, é a prova material do modelo: a estatal revende a solução Google a outro ente público. Se o contrato entre Celepar e Google for declarado nulo, a Sanepar e demais órgãos que aderiram por meio da estatal ficam expostos a consequências imediatas:
• Interrupção abrupta de serviços: migrações e integrações interrompidas podem paralisar operações críticas.
• Perdas financeiras: gastos já realizados podem ser considerados indevidos, exigindo ressarcimento.
• Instabilidade administrativa: pedidos de responsabilização de gestores, retrabalho e déficit de confiança em fornecedores.
A assinatura de contratos derivados, sem garantias técnicas e sem ETP, transformou uma solução tecnológica em um passivo político e operacional.
Fragilidades contratuais
A análise do contrato padrão do programa Google Cloud Partner Advantage — adotado pela Celepar — revela cláusulas incompatíveis com o regime jurídico das estatais:
• Pagamentos “não reembolsáveis” e obrigação da estatal de pagar independentemente do recebimento de seus clientes: a Celepar assume risco comercial ilimitado.
• Juros contratuais elevadíssimos em caso de atraso (por exemplo, 1,5% ao mês), potencialmente abusivos.
• Renovação automática de vigência: vedada para contratações públicas sem novo juízo de conveniência.
• Limitação extrema da responsabilidade da fornecedora: indenizações limitadas ao valor pago nos últimos 12 meses, insuficientes diante de vazamentos ou interrupções sistêmicas.
• Cláusulas de alteração unilateral do “Guia do Programa” pela Google, com opção para a estatal rescindir caso não aceite — cenário que submete a administração a mudanças impostas sem termo aditivo.
• Arbitragem privada como foro de solução de controvérsias — cláusula incompatível com o regime público sem autorização legal.
• Sigilo amplo e genérico, potencialmente conflitante com a Lei de Acesso à Informação e com a publicidade exigida para contratos públicos.
Essa composição contratual desloca riscos sistêmicos e financeiros para o ente público, reduzindo instrumentos de controle e exposição da sociedade.
Soberania digital
A dependência de uma nuvem estrangeira tem implicações que ultrapassam o balanço contábil. A falta de data centers exclusivos no Brasil implica que dados públicos possam transitar ou ser armazenados em servidores no exterior — sujeitos, em casos extremos, a legislações estrangeiras como o CLOUD Act dos Estados Unidos, que permite a requisição de dados por autoridades americanas.
Mesmo em cenários de boa fé, essa dinâmica cria possibilidade de acesso externo a informações sensíveis — dados de segurança pública, saúde, finanças — com repercussões para a privacidade dos cidadãos e para a estratégia do Estado.
A LGPD exige medidas claras de adequação; nos autos disponibilizados para esta apuração, não há evidência pública robusta de plano de mitigação que garanta segurança jurídica e operacional ante a presença do fornecedor estrangeiro. Somam-se a isso o risco do vendor lock-in: após ampla implantação, migrar para outra plataforma é custoso e tecnicamente complexo, reduzindo opções e penalizando o erário.
Lobby, nomes e o jogo político
Decisões técnicas raramente nascem fora do jogo político. No caso do Google no Paraná, esse jogo tem nomes, viagens e encontros que acendem um alerta: o processo deixou de ser apenas um debate técnico para aproximar atores políticos e interesses privados de forma que, na visão de críticos, pode comprometer a imparcialidade das decisões.

A peça central desse nó é a família Canziani. Alex Canziani, secretário estadual de Inovação e Inteligência Artificial, presidiu o Conselho Estadual de Tecnologia da Informação (CETIC-PR) na sessão que aprovou a utilização do Google Workspace e está à frente do processo de desestatização da Celepar — processo que, segundo reportagens e documentos públicos, tem sido conduzido sob sua coordenação. Essa dupla função — formular política, presidir instância de decisão e conduzir a venda da empresa que futuramente celebrará contratos — cria um cenário de potencial conflito institucional, sobretudo quando se soma à proximidade política com atores nacionais.

Sua filha, a deputada Luísa Canziani (PSD-PR), figura pública central nas discussões sobre inteligência artificial no Congresso, também aparece em várias frentes que atraem atenção e críticas. Reportagens documentaram que Luísa integrou, no início do ano, uma comitiva que visitou a sede do Google no Vale do Silício — viagem que, segundo apurações jornalísticas, teve encontros com representantes da empresa e de grupos de interesse do setor.
Essas visitas suscitam preocupação entre organizações como a Coalizão Direitos na Rede (CDR) e especialistas em políticas públicas digitais, que alertam para o risco de proximidade excessiva entre legisladores e lobistas das Big Techs em temas sensíveis como a regulação da IA.
O histórico político amplia o cenário: iniciativas e frentes parlamentares alinhadas a interesses das grandes plataformas — como alguns movimentos associados à chamada “Frente Digital” — têm sido citadas em reportagens e análises como vetores de pressão sobre pautas regulatórias no Brasil.
A presença contínua de lobistas das empresas de tecnologia junto a parlamentares e operadores públicos, documentada em coberturas jornalísticas, alimenta o temor de captura regulatória — situação em que políticas públicas são moldadas preferencialmente pelos interesses privados de corporações dominantes.
A sobreposição de papéis no plano estadual — com Alex Canziani ocupando posição de comando no processo de privatização da Celepar ao mesmo tempo em que presidia a instância que aprovou o uso do Workspace — aumenta a necessidade de escrutínio. Para críticos e auditores, essa conjunção de funções fragiliza barreiras institucionais que deveriam separar formulação, controle e execução, e exige investigação e transparência para afastar dúvidas sobre possíveis favorecimentos.
Importante frisar que as matérias, visitas e encontros citados não provam, por si só, dolo ou ilegalidade. O que documentam são fatos verificados (participações em reuniões, viagens internacionais, encontros com representantes do setor) e a preocupação pública manifestada por organizações, auditores e jornalistas. Em contextos assim, a transparência total — publicação de minutas, pareceres jurídicos, relatórios de ETP e justificativas técnicas — é ferramenta mínima de governança e controle.
O movimento Salve seus Dados – Paraná, com apoio da Fenadados, pretende adotar uma série de medidas para evitar que o processo comercial chegue a um ponto sem retorno:
1. Suspensão cautelar das renovações e aditamentos que incluam o Google Workspace como cláusula padrão até a apresentação e avaliação pública dos ETPs, PDTIs e estudos de conformidade com a LGPD.
2. Publicação imediata das minutas e dos pareceres jurídicos que embasaram a orientação da Casa Civil, para permitir controle social e técnico.
3. Exigência de processo competitivo, com comparação objetiva entre alternativas (Google, Microsoft, soluções livres, fornecedores locais) antes de qualquer adoção em massa.
4. Revisão das cláusulas contratuais padrão (pagamento, limitação de responsabilidade, arbitragem, confidencialidade) para adequação ao regime das estatais.
5. Plano de contingência para órgãos que já contrataram via Celepar (Sanepar e outros), que inclua avaliações de continuidade de serviço e estratégias de migração caso a anulação seja confirmada.
6. Ação de fiscalização imediata pelo TCE-PR, Ministério Público e controladorias internas para verificar irregularidades formais e materiais do contrato entre a Google e a Celepar, com especial atenção ao teor do Acórdão 408/25 (TCE-PR) e do Acórdão 2488/18 (TCU).
7. Investigação de eventuais conflitos de interesse e exame das condições que envolveram viagens, encontros e decisões do CETIC-PR, observando a necessidade de resguardar a isonomia e a imparcialidade da decisão pública.
Estado Mínimo
A história que se desenrola no Paraná é mais que uma disputa por contratos tecnológicos: é um ensaio sobre como o poder público administra sua soberania digital. A pressa para fechar um modelo contratual padronizado até 15 de outubro de 2025 tem potencial para transformar decisões técnicas em passivos públicos duradouros.
E há um ponto de ordem moral e institucional: a transformação da exceção (a “oportunidade de negócio”) em expediente rotineiro, para revenda de serviços, configura não só um risco administrativo — configura uma afronta direta ao que determinaram, de forma clara e restritiva, o TCE-PR (Acórdão 408/25) e o TCU (Acórdão 2488/18).
Esses tribunais de contas estabeleceram critérios e limites justamente para prevenir que a exceção se converta em instrumento de desvio das regras de concorrência e transparência. Ignorar esses acórdãos não é apenas uma falha técnica: é uma ruptura com a salvaguarda formal que protege o erário.
Se a administração pública decidir, nas próximas semanas, priorizar prazos sobre estudos, tecnologia sobre soberania e procedimentos sumários sobre processos competitivos, o Estado poderá acordar em poucos anos refém de uma arquitetura tecnológica que limita opções, expõe dados e onera o contribuinte. Caso contrário, a decisão pode ser revista à luz dos acórdãos dos tribunais de contas, dos princípios constitucionais e do interesse público — e, se for o caso, corrigida por meio de suspensão, revisão e responsabilização.
O setor privado paranaense já se movimenta freneticamente para tentar uma carona no complicado processo de privatização da Celepar. E aos moldes do que ocorreu com a Prefeitura de Curitiba, tentar transferir o máximo de contratos possíveis para o controle das empresas. Por traz desse movimento está o Instituto das Cidades Inteligentes, objeto de reportagem sobre suas atividades no Distrito Federal, com o apoio do Serpro.
A Secretaria de Estado da Inovação, Modernização e Transformação Digital (SEI) do Paraná celebrou o Termo de Cooperação N.º 32/2024 com o Instituto das Cidades Inteligentes (ICI), uma organização social com um vasto histórico de investigações por corrupção e suspeitas de desvio de dinheiro público em Curitiba.
Embora o Termo de Cooperação, assinado pelo Secretário da SEI, Marcelo Rangel Cruz de Oliveira, e pelo Diretor-Presidente em exercício do ICI, Marcelo José de Araújo Prado, não envolva transferência de recursos financeiros diretos entre as partes [96, 4.1], o acordo institucionaliza a presença do ICI no fomento à inovação estadual, visando promover novos negócios e a modernização da gestão pública em municípios paranaenses.
O principal objetivo da cooperação é a união de esforços para a realização conjunta de encontros e eventos, convidando municípios para a apresentação de soluções tecnológicas para a administração pública.
No Plano de Trabalho que integra o Termo de Cooperação, as metas incluem a realização de até quatro encontros/eventos por ano e a apresentação de ao menos cinco soluções tecnológicas aos municípios. Mais criticamente, a parceria prevê a oferta de “testes gratuitos” ou “provas de conceitos” (PoCs) de soluções tecnológicas em municípios, com a meta de emplacar até quatro PoCs por ano, monitorados pela SEI.
O ICI é apresentado como um provedor de tecnologias para a Prefeitura de Curitiba desde 1998, cuja atuação foi creditada como um dos fatores para Curitiba ser eleita a Cidade Mais Inteligente do Mundo em 2023.
*Com informações do Movimento Salve seus Dados.