Os dois acordos que a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia assinou com a Febraban (renovado no dia 12 deste mês, por mais seis meses) e a Associação Brasileira de Bancos (ABBC – assinado no dia 7 de janeiro, por 12 meses), já informados por esse blog, trazem fortes indícios de desvio de finalidade, além de prejuízos ao erário e burla ao Código de Defesa do Consumidor. Nenhum cidadão brasileiro deu autorização prévia para uso dos seus dados biométricos e biográficos pelos bancos, que compulsoriamente cederam à Justiça Eleitoral, ou por terem se cadastrado na plataforma de serviços do governo, o Gov.br.
Cópia do acordo assinado com a ABBC em poder deste blog – que pelas características dos extratos já publicados pelo governo no Diário Oficial da União, deverá ser o mesmo a ser assinado com a Febraban – mostra a falta de clareza nos objetivos e um flagrante desrespeito com as informações pessoais dos brasileiros.
“Voluntários”
No texto do acordo fica estabelecido que os donos dos dados pessoais, extraídos pelos bancos das bases de dados do TSE, da Plataforma Gov.br e da Identidade Digital (que está sendo criada pelo governo), concederão essas informações “voluntariamente”, sem especificar em quais circunstâncias isso se dará. Ocorre que, no caso da Febraban, esses dados já são utilizados pelos bancos há mais de seis meses; desde julho do ano passado.
Então indaga-se: alguém “consentiu voluntariamente” ao governo repassar essas informações para os bancos, durante esse período?
Também há sérias dúvidas se a Autoridade Nacional de Proteção de Dados foi alguma vez consultada para dar um parecer sobre o fechamento desses acordos. Aparentemente não, pois sequer a LGPD é a base jurídica deles. Tanto que ontem (17) o Idec anunciou que está cobrando informações da ANPD sobre a participação dela e os procedimentos que o governo e os bancos adotarão para operacionalizar essa transferência de informações pessoais.
Interesse público
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não é citada claramente no texto do acordo. A legislação utilizada pelo governo é de 2017, ainda no Governo Dilma Roussef e são as seguintes:
- Lei n
º13.444/17 – que criou Identificação Civil Nacional (ICN) - Lei nº 13.019/17 – que estabelece o regime jurídico das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação.
Na segunda legislação o argumento para o fechamento de acordos de cooperação entre o público e o privado afirma levar em conta “a consecução de finalidades de interesse público e recíproco”. Indaga-se: qual o “interesse público” nestes acordos com os bancos, ainda não demonstrado claramente pelos detentores desses dados pessoais, que não foram consultados previamente se desejam cede-los para instituições financeiras?
Uma coisa seria alguém que deseja um empréstimo ser obrigada a entregar os seus dados para essas instituições, outra é dar aos bancos uma franquia para bisbilhotar dados pessoais de 177 milhões de brasileiros. Há ainda uma questão a ser levada em conta: alguém foi avisado previamente pelo governo, que o acesso à sua plataforma de serviços Gov.br, ou na retirada da futura Identidade Civil Nacional, isso implicará num consentimento automático para o Ministério da Economia fazer o que quiser com esses dados pessoais, inclusive acordos para cessão dos mesmos aos bancos?
Embora os termos do acordo com a Associação Brasileira de Bancos (ABBC) – que deverá ser o mesmo com a Febraban – aleguem que as instituições financeiras não terão acesso direto aos dados das pessoas, que ele será “automatizado” , o simples fato de haver uma validação biométrica e biográfica automatizada, já pressupõe que haverá um tratamento de dados previsto na LGPD. Legislação que é ignorada no texto.
Prejuízo ao erário
Outra questão que chama a atenção no acordo de cooperação com a ABBC é que ele não envolve cifras. O Ministério da Economia não visou nenhum tipo de remuneração pelo uso de dados de brasileiros, nem mesmo pelo custo operacional da integração de plataformas tecnológicas distintas. O acesso aos dados pessoais do cidadão brasileiro vai sair de graça para os bancos.
Trata-se de um acordo inédito visto por esse blog, coisa “de pai para filho”. Pois os bancos não pagarão sequer pela disponibilização da infraestrutura do governo alocada no Serpro onde os dados são armazenados. O mesmo Serpro que tentou passar embutida numa Medida Provisória a cobrança pelo acesso e uso das suas máquinas, quando cientistas de dados e govtechs buscam essas bases de dados para prospectar estudos ou fazerem serviços de analytics com informações do governo.
O Serpro, entretanto, não deverá ter prejuízo total com esse acordo. Acabou de ganhar um contrato com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no Valor de R$ 72,3 milhões, para operar nas bases de dados da Justiça Eleitoral e extrair dela as informações biométricas e biográficas dos eleitores, para efeito de implantação da Identificação Civil Nacional (ICN). Resta saber se o dinheiro cobre o custo de centenas de bancos acessando diariamente os dados de cidadãos para validação de cadastros.
É curioso ver que a Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia ou o Tribunal Superior Eleitoral (que não assina conjuntamente o acordo) não tenham nenhum interesse comercial com os bancos ou estejam preocupados com o custo operacional que suas áreas de TI arcarão por conta dele.
Esse mesmo tratamento ” de pai para filho” não tem sido dado aos bancos na área da Previdência Social. Ao validar, por exemplo, as informações de aposentados e pensionistas, para fins de concessão empréstimo consignado, os bancos são obrigados a pagar uma taxa por serviços prestados pela Dataprev. O negócio é tão bom para a estatal, que o sistema de validação de informações de aposentados e pensionistas no Consignado vem gerando um volume de receitas que já chega a representar 40% nas contas da estatal.
LGPD e Defesa do Consumidor
Muitas considerações ainda podem ser feitas com base no texto desses acordos assinados entre o Ministério da Economia e as entidades que representam os bancos, os quais o TSE estranhamente não é signatário, embora suas bases de dados estarão sendo fartamente utilizadas. Mas prefiro deixar com os advogados especializados em LGPD, com a omissa ANPD, além dos organismos de controle, já que envolverão custos operacionais que serão absorvidos pelo governo, mas pagos pelos contribuintes.
A própria área de Defesa do Consumidor (como um todo e não somente o Idec) deveria entrar nessa questão, já que existe uma grande possibilidade de futuramente os detentores desses dados pessoais ainda acabarem pagando alguma tarifa aos bancos, pela “trabalheira” que eles terão na coleta e analise desses dados. Afinal de contas, banco não é instituição de caridade e nem faz “política pública” de graça.