LGPD, a que foi sem nunca ter sido

Por Evandro Oliveira* – Muito se tem dito sobre privacidade de dados, muito foi feito nos últimos anos até que em 2018 foi promulgada a Lei que ficou conhecida como LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados(1). Analogamente à GDPR, recheada de “jabutis“, a lei brasileira queria passar a imagem de modernidade. Portanto, o Brasil não é para amadores e os atropelos. Desde 2018, quando iniciou a “vigência” da Lei, a extensão dos prazos para execução, fiscalização etc. tem sido uma fantasia.

Desde a publicação da Lei, surgiram especialistas, a maioria advogados, que ganharam e ainda ganham muito dinheiro. Eles não conseguem resolver os problemas do cidadão, que deveria ter seus dados protegidos, mas continuam trabalhando.

Resumidamente, nossa privacidade tem sido “hackeada” e não encontramos ninguém para nos defender. Certamente, a minha experiência pessoal está sendo reproduzida, enquanto você lê este texto em milhões de telefones no país.

Modus Operandi

Em primeiro lugar, declaro que a experiência que relato aqui é comum a de várias outras pessoas e cidadãos. Nossos dados e informações têm sido cedidas para “degustação” de bancos e de outras organizações.

Desse modo, recebo uma dúzia de ligações por dia com os tais correspondentes bancários oferecendo empréstimos consignados, fazendo cobranças e ligações indesejadas. Infelizmente, os órgãos que deveriam proteger o cidadão não enfrentam estes poderosos senhores da informação.

Os maiores beneficiários das informações da cada cidadão que tem vilipendiado seu direito à privacidade são os maiores anunciantes da mídia.

Não adianta cada cidadão bloquear e denunciar um determinado número pois a central telefônica deles é “inteligente”. Em outras palavras, sempre haverá algoritmos para superar a nossa capacidade de bloquear números indesejados. Virou uma pandemia nacional e que não tem nenhuma vacina à vista. Medidas paliativas e “conquistadas” pelos Procon e outras instâncias de defesa do cidadão são puro lero-lero.

LGPD nasceu morta

Exatamente um ano atrás, publiquei texto em que, de acordo com minhas qualificações e experiências profissionais, tentava mostrar como a LGPD poderia ser útil. Desde então, só tenho visto advogados ganharem muito dinheiro com cursos de especialização e artigos que enganam até muitas empresas.

Existe uma certa cumplicidade de alguns setores que chega a assustar, tamanha a desfaçatez para com o cidadão comum que deveria ter seus dados protegidos.

Poder e privacidade

A profusão de dados e informações privadas dos cidadãos, nas mãos do governo e corporações privadas, superou todos os limites do racional. Diziam os filósofos contemporâneos que “informação é poder”.

Com a explosão das redes sociais e das facilidades dos “apps” temos um mundo melhor, mais fácil, mais rápido e sem nenhuma privacidade. Num país de pouco mais de 220 milhões de habitantes ( e o Censo 2020, hein?) ter mais de 350 milhões de chaves PIX beira algo surreal. Como vivemos num mundo distópico, a privacidade dos brasileiros é digna de um documentário do tipo “Privacidade Hackeada(2), com concordância da vítima.

Este poder de domínio da informação das pessoas por pequenos grupos é algo parecido com o poder do capital sobre o trabalho. A crueldade, desse modo, é que o dominado ofereceu seu maior bem e não vai receber nada em troca, a não ser ligações dos operadores de call center.

Em suma, tudo que imaginei, e tentei evitar, na implantação da LGPD no Brasil, parece que está se confirmando.

Degustação sem LGPD

Não tenho a mínima ideia de onde, como e quando surgiu a ideia da “degustação” de dados dos cidadãos por bancos e outras corporações privadas. Certamente, alguém pensou que se o Governo tem todas as informações dos cidadãos pode fazer algum algoritmo com muita inteligência artificial e pouca inteligência humana. Alguns diriam que é maquiavélico e eu diria que é da “natureza humana” e do salve-se quem puder que se tornou o país.

Muito antes do início da elaboração da LGPD o TSE, num acordo de cooperação com a Serasa, forneceu dados de eleitores. O TSE nunca recebeu autorização de nenhum eleitor para tal ação. Sem dúvida, a desculpa pode ter sido de que não existia LGPD. Entretanto, o TSE forneceu informações sobre as quais ele não tem a responsabilidade de guarda.

Governança e Privacidade

Neste momento, a pauta está na degustação que o Governo Federal está oferecendo para bancos (via Febraban) os dados completos das pessoas. Como se não bastasse, saímos de uma pretensa onda de governança, alardeada como dos domínios das organizações e governo, para o total descontrole.

O caso dos dados do Ministério da Saúde e a questão da vacina cheira muito mal, o governo entregou os dados nas mãos de corporações “na nuvem”. Agora os dados não voltam, ou pior, foram copiados e estão por aí, sendo vendidos por algum dinheiro, em milhões de cópias, sendo adulterados e utilizados maliciosamente.

Não temos nem governança e nem preservamos nossa privacidade, e os órgãos de controle do Governo Federal não se pronunciam. Afinal, órgãos do Executivo podem desrespeitar as leis? Agências reguladoras podem ignorar fraudes e ilegalidades? O exemplo da Anvisa, se tomado por analogia para a questão da proteção de dados, pode ser uma medida comparativa interessante.

Por exemplo, correspondentes bancários ligam para nossos telefones celulares e fixos de maneira absurda. Ninguém faz nada, e estes correspondentes, bancos, escritórios de advocacia sabem até qual o valor que meu benefício da Previdência foi acrescido. Sabem, antes de mim, qual a minha “margem consignável” disponível. Oferecem até cartões de empréstimo “antecipado”, mesmo que eu esteja negativado e com nome no Serasa.

São estas coisas e situações que explicam a frase “com STF e tudo“.

“Foi sem nunca ter sido”

Diz-se, no popular, que uma coisa não funciona como preconizado é conhecido como “a que foi sem nunca ter sido“. O sistema é bruto e o Brasil, primordialmente no Planalto Central, não é para amadores e neófitos e nem para quem defende interesses coletivos.

A LGPD encaixa-se nesta premissa, muito foguetório e muita propaganda, poucos se locupletando, e a população desprotegida. A privacidade dos dados, se não existia e não havia proteção, agora com a Lei, continua sem proteção contra os “degustadores” de informação.

Exatamente um ano atrás eu escrevi um texto(2) sobre a Lei 13.709 pegar ou não pegar, ela pegou, os cidadãos brasileiros desprotegidos. É uma vergonha não termos nenhuma proteção coletiva. Uma vez que nenhum órgão da Defensoria, nenhuma entidade como OABABI e outras se apresentam para nos defender.

Contudo, se procuramos um advogado, a causa individual é pouco interessante e, se formamos um grupo, o poder econômico tem advogados melhores. Existem escritórios de advocacia que, em qualquer tipo de ação individual contra uma corporação, colocam seus algoritmos para funcionar e não tem perdão. A vida do indivíduo é exposta desde o dia em que ele recebeu sua identificação de CPF.

Estamos à mercê de algoritmos e vivendo numa sociedade pós-apocalíptica que pode prever o líquido do seu benefício no mês que vem. A LGPD é o que diz ser, uma Lei, que serve para fazer políticas, que nunca serão aplicadas ou se forem aplicadas só para beneficiar poucos ou os infratores.

Enfim, aguardamos as manifestações da ANPD e profissionais vinculados à Lei. É provável que as vítimas sejam culpadas e estejam condenadas ao descaso, perdemos !

(1)  “LEI Nº 13.709, DE 14 DE AGOSTO DE 2018

(2)  “Privacidade Hackeada

(3) “Show me The Code – ou a LGPD “não pega

*Evandro Oliveira – Sociall Br Participações, Empreendimentos e Consultorias Ltda