Por Jeovani Salomão* – Quando eu tinha 6 anos, vi pela primeira vez um tabuleiro de xadrez. Meu irmão, Jorge, há época, estava na Aeronáutica, servindo na base aérea de Anápolis. Ele conheceu o jogo por lá e, considerando que na nossa casa sempre gostamos de jogar, resolveu introduzir a nova diversão para família. Algum tempo depois, ganhei o livro “Xadrez Básico” de Orfeu Gilberto D´agostini, o qual tenho até hoje, e, após tê-lo estudado, comecei a ganhar do meu irmão, que decidiu não seguir nem a carreira militar nem a de enxadrista.
Pelas inúmeras virtudes deste fenomenal passatempo, continuei minha prática e cheguei a disputar alguns torneios, embora sem grande sucesso. Meu melhor desempenho foi em um campeonato sul-americano no qual obtive o meritório 54º lugar, de um total de 120 jogadores, dos quais apenas eu tinha 15 anos (os demais participantes eram todos adultos). Apesar de não ter obtido resultados mais expressivos, o xadrez me trouxe alguns ensinamentos. Pensar antes de jogar, prever as diversas reações do adversário, antever jogadas possíveis, explorar as debilidades de estrutura, desenvolver a concentração, o raciocínio lógico e assim por diante.
Um conceito muito especial, advindo da minha experiência enxadrística, é representado na frase de Aaron Nimzowitsch, Grande Mestre Internacional, nascido na Letônia em 1886: “A ameaça é mais forte que sua execução”. Significa que, inúmeras vezes, o adversário é mais molestado por uma possibilidade, do que seria pelo próprio lance. A transposição para a vida real é bastante evidente. Não raro presenciamos pessoas, e até mesmo organizações, entrarem em colapso por algo que sequer chegou a acontecer. No campo da tecnologia, apenas para citar um único exemplo, foram gastas fortunas para corrigir problemas relacionados ao famoso Bug do Milênio.
Quando os desenvolvedores começaram a construir seus projetos de software, por uma questão de economia de espaço, registraram os anos com apenas 2 dígitos. Ocorre que com a virada do século, “1920” e “2020” seriam guardados da mesma forma, apenas como “20”. As previsões eram tenebrosas, mas no final, nada importante de fato aconteceu, além das fortunas jogadas fora em correções que se mostraram inócuas.
Acredito que o inverso da citação é também um extraordinário conceito, de forma que cunhei a seguinte frase: “A possibilidade é mais poderosa que a realização”. Muitas vezes a crença em um sonho, um acontecimento, um objetivo podem inspirar a ponto de gerar consequências incríveis, mesmo que no final aquilo que se imaginou não se concretize. Manter a chama acessa dá forças para insistir na caminhada original e em outros aspectos da vida.
Desde o início do governo atual, vislumbra-se a possibilidade da privatização das empresas públicas de TI, com especial ênfase para o SERPRO e para a DATAPREV. O assunto é complexo e, possivelmente, não haverá ambiência política para que o movimento tenha sucesso. No entanto, deveríamos transformar o intuito, mesmo que nada aconteça, em algo muito proveitoso para o país. Estas estatais suportam extensos serviços públicos e, para tanto, lidam com informações relevantes, muitas vezes sigilosas, de pessoas e instituições.
O momento, portanto, é extremamente propício para um debate dos modelos que desejamos para o Brasil. Será que dados confidenciais dos cidadãos deveriam ser passados para empresas privadas? E se elas forem estrangeiras? Será que estas estatais deveriam prestar tantos serviços quanto elas prestam? Será que todos são essenciais? O quanto as próprias estatais poderiam terceirizar, mas manter suas responsabilidades? As estatais estimulam ou inibem a indústria de software nacional?
Há temas sobre a contratação. Deveriam mesmo poder ser contratadas diretamente, sem licitação, para qualquer tipo de serviço? Os preços que praticam são compatíveis com o mercado? Seria mais barato contratar uma empresa privada, se fosse possível via licitação, do que as estatais diretamente? Será que poderiam participar de licitações que hoje são disputadas apenas pelas empresas privadas? Será que poderiam competir em clientes privados, considerando que possuem sustentação do poder público?
Outros temas relevantes podem ser levantados, como questões relativas ao quadro de colaboradores. Os funcionários das estatais oferecem custo-benefício para elas compatível com aqueles de empresas de mercado? A produtividade do corpo técnico é suficientemente boa, caso houvesse uma competição entre elas e empresas de mercado? Se a privatização ocorrer, quem arca com o passivo trabalhista?
Enfim, não há respostas rasas que possam determinar o melhor curso de ação. Faz-se necessário um debate sério e aprofundado, que vá muito além do simplismo de defender ou não a privatização. Estamos tratando de serviços por vezes vitais e informações sensíveis. Precisamos aprender a dialogar, pensando em quais modelos queremos para o futuro, com uma visão de estado e não com uma defesa pequena de um ou outro governo.
Por convicção própria, formada ao longo dos anos que empreendo e represento o setor de tecnologia da informação, local e nacionalmente, sou favorável ao princípio da privatização. Prefiro um Estado mais leve, sem defender a ingenuidade de “Estado Mínimo”. No entanto, não gostaria, por exemplo, de ter o sistema de compras públicas sob a responsabilidade integral de uma empresa privada, muito menos qualquer sistema de segurança nacional nas mãos de uma empresa estrangeira.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.