Por Flávia Lefèvre –No último dia 1º de outubro a Google publicou nota informando que passará a investir US$ 1 bilhão “globalmente em parcerias com veículos jornalísticos responsáveis por criar e selecionar conteúdo de alta qualidade para o novo produto”. A nota diz também que se trata de um “novo programa de licenciamento de conteúdo que se soma a outras”, com o objetivo de “reforçar o compromisso de longo prazo em ajudar a fortalecer o ecossistema jornalístico”.
Já firmaram contrato com a Google as seguintes empresas chamadas de “parceiras”: Band, Estadão, Folha de São Paulo, Jovem Pan, Revista Piauí, SBT News, UOL e Veja, bem como A Gazeta, Correio Braziliense, Estado de Minas, Folha de Boa Vista, Folha de Pernambuco, Gazeta do Povo, GZH, Jornal Correio (BA), Jornal do Comércio (RS), NSC Total, O Dia, O Tempo e Portal Correio.
O projeto que se inicia na Alemanha e no Brasil – aqui alcunhado como “Destaques”, segundo a Google, não se resume ao apoio financeiro, pois “marca também o surgimento de uma experiência jornalística diferente na internet. O projeto vai contar com a curadoria editorial de diversas redações reconhecidas no mundo, e também oferecerá aos leitores mais informações e sacadas sobre os assuntos que importam e permitir que os veículos aprofundem a relação com seu público”, de modo a promover a “sustentabilidade do jornalismo”.
Vantagens para a Google e vulnerabilidades para os internautas e para as forças progressistas
As intenções da Google com esse projeto parecem claras: a primeira delas é se livrar do peso regulatório decorrente do seu enquadramento como meio de comunicação social, como está expresso nos artigos 220 a 224 da Constituição Federal, que implicam em restrições quanto à atuação como monopólio ou oligopólio, limites à exploração da publicidade e definição de programação, entre outras. Ou seja, é extremamente vantajoso para a Google lucrar com a produção jornalística, realizando atividade de cunho claramente editorial, por meio de suas práticas algorítmicas de gerenciamento de conteúdos, deixando para as empresas de mídia as obrigações relativas às normas que regulam o setor.
Além disso, a Google vai se consolidando como uma das principais plataformas de concentração do mercado de leitura de notícias na Internet, junto com o Facebook. Há anos, segundo dados da Alexa – ferramenta da Amazon, mais de 70% dos conteúdos jornalísticos são lidos nestas duas plataformas. Consequentemente, com seus critérios definindo suas práticas algorítmicas de gerenciamento de conteúdos, a empresa vai se firmando como controladora determinante do fluxo de informação no Brasil e no mundo. Dada sua dimensão de monopólio global nos segmentos de mecanismo de busca e de plataforma de vídeos na Internet, passará a ditar, como aliás já iniciou a fazer desde 2017 como comentado em outro artigo publicado neste blog, o que é “conteúdo de alta qualidade”, reduzindo a visualização do que reputa irrelevante e recomendando e impulsionando os conteúdos com base em seus acordos comerciais. Aliás, o nome do projeto no Brasil já diz tudo; os conteúdos das empresas que contratem com a Google receberão tratamento algorítmico que lhes darão destaque, ênfase, relevância e maior alcance, conferindo um poder de influência arbitrário e descolado dos movimentos políticos orgânicos emergentes da sociedade.
Nessa linha, chama muito a atenção, ainda, o fato de que as empresas jornalísticas ou sites e canais de notícias alinhados com as forças de esquerda ou progressistas de modo geral, pelo menos a princípio, ficaram de fora do projeto, o que já indica uma discriminação que indica cautela quanto ao que se vai considerar conteúdo de alta qualidade. No novo projeto da Google, qual papel caberá a Carta Capital, a revista Brasil de Fato, a TVT, o The Intercept, a revista Fórum, DCM, Meteoro, Brasil 247, GGN, entre outros jornais e canais de linha progressista ou de esquerda?
O poder de interferência no direito ao livre fluxo da informação
É certo que a Google é uma empresa privada e que tem todo o direito de expressar sua linha editorial e as correntes políticas que apoia. Suas práticas comerciais, entretanto, devem estar alinhadas com a legislação brasileira. Fundamental ter presente que a Google domina mercados informacionais relevantes, a ponto de todos os organismos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, em todas as esferas da federação possuírem canais no YouTube, por exemplo, o que corrobora o entendimento de que suas práticas de gerenciamento de conteúdos devem, sim, serem alvo de regulação estatal.
Lembremos, por exemplo, que a mini-reforma eleitoral de 2017, alterou a lei eleitoral brasileira proibindo a propaganda política paga na Internet, mas, por outro lado, criou exceções para permitir o impulsionamento de conteúdos e mecanismos de buscas, conferindo aos principais provedores de aplicação na Internet – Facebook, WhatsApp, Twitter e Google – o papel de principais palanques de debates na Internet, com um poder de influência determinante, como assistimos nas eleições de 2018, no Brasil.
Esse e outros fatos graves que comprometeram processos políticos em diversos países, revelam que a discriminação decorrente das práticas comerciais algorítmicas, baseadas na exploração abusiva de dados pessoais e em interesses comerciais privados, estão incontestavelmente descoladas do interesse público. E essas práticas terminam por comprometer os institutos jurídicos e legais cujos objetivos legítimos são o equilíbrio e imparcialidade no trato da informação, de modo a evitar o silenciamento de correntes de pensamento e de posições políticas da sociedade, que tem trazido influências nefastas para a sustentação da nossa democracia.
A armadilha
Sendo assim, como é possível embarcar no discurso megalomaníaco da Google – empresa privada estadunidense com relações estreitas com os órgãos de segurança dos Estados Unidos, de que com esse projeto, com nítida orientação enviesada por uma linha de pensamento, pretende “promover a sustentabilidade do jornalismo”?
É curioso que as mesmas empresas jornalísticas que hoje reclamam a perda de um volume estrondoso de receitas publicitárias para as empresas de provimento de aplicações, a ponto de recentemente terem constituído uma Coalizão para fazerem lobby pesado no Congresso Nacional para que se imponham às plataformas que atuam na Internet obrigações regulatórias, caiam na armadilha de vincularem o desenvolvimento de seus modelos de negócios a Google.
O projeto proposto pela Google, muito provavelmente com o objetivo de evitar a imposição de carga regulatória para suas atividade e reduzir os ataques que vem recebendo de diversos segmentos da sociedade, traz o risco nítido de que se estabeleça relação de dependência perigosa, sem que se possa prever as consequências dessa parceria, não só para o direito à informação, mas também para a sustentabilidade e autonomia das empresas jornalísticas e garantia da liberdade de expressão para as empresas que não façam parte do grupo da mídia hegemônica.
Talvez as empresas jornalísticas da grande mídia, pesando bem os prós e contras, tenham resolvido se aproveitar do poder da Google de ditar o que é notícia de alta qualidade, resolveram aceitar os riscos em troca de ficarem qualificadas como jornalismo de credibilidade. Ou seja, as empresas jornalísticas acreditam no valor e no poder do filtro da Google que, ao fim e ao cabo, é quem vai determinar quais serão as mídias confiáveis a ponto de receberem seus Destaques e terem seus conteúdos patrocinados.
Mas vale aqui o meu destaque: vejam que a Globo não caiu na armadilha, o que reforça a opinião consignada aqui no sentido de que os valores prometidos pela Google nem de longe são suficientes para garrotear o modelo de negócios de uma grande empresa de mídia, que tem planos claros de expandir e intensificar seus negócios na Internetl.
Importante considerar que o projeto afeta também os jornalistas, na medida em que quem será remunerado pelos conteúdos serão as empresas jornalísticas e não os profissionais, cujas relações de trabalho já vêm há tanto tempo deterioradas.
Se a missão que a Google, de forma prepotente se arroga, é mesmo aquela anunciada, qual seja: de “organizar as informações do mundo e torná-las acessíveis e úteis para todas as pessoas, em todo o mundo”, a ponto de “pagar para que o público tenha acesso gratuito a reportagens protegidas por paywall”, as bases do projeto tinham de ser outras e o leque de empresas jornalísticas envolvidas muito mais diverso, de modo a contribuir com as instituições democráticas nacionais que orientam a comunicação social.
Um bilhão de dólares é uma contrapartida irrisória diante dos valores que estão em risco com este projeto!
*Flávia Lefèvre é Advogada e Mestre em Processo Civil pela PUC/SP.