Visita secreta às dependências da Ceitec foi para atender pedido de “filho de amigo”, diz liquidante da estatal do chip

O liquidante da Ceitec, oficial da Reserva da Marinha, Abílio Eustáquio de Andrade Neto, tem um modo bastante peculiar de desmentir notícia, um fato que ocorreu no ano passado: ele descumpriu decisão do Tribunal de Contas da União, que paralisou o processo de extinção da empresa, e recebeu nas dependências da estatal do chip interessados em comprar equipamentos para a produção de semicondutores.

Embora alegue que os encontros foram públicos, pois constavam na agenda da empresa, parte da visitação às dependências estratégicas da Ceitec foi omitida na agenda, mas vista pelos funcionários que denunciaram o episódio a este blog. Abilio alega que não ocorreu uma “visita secreta” nas dependências da Ceitec, inclusive na área restrita de fabricação de chips. Apenas atendeu ao pedido de um “filho de um colega de turma da Marinha”, que desejava conhecer a Ceitec. A declaração ocorreu no último dia 15 numa audiência pública da Comissão de Saúde e Meio Ambiente (Cosmam) da Câmara Municipal de Porto Alegre.

O visitante, segundo ele, apenas se limitou a um encontro em sua sala e depois participou de um almoço no restaurante da empresa. Ou seja, o sujeito se deu ao trabalho de viajar até Porto Alegre (RS), apenas para “bater papo” com o liquidante na sala dele e almoçar no “bandejão” da estatal, que será esquartejada e vendida aos pedaços para empresas privadas. Não por acaso, uma das interessadas nos equipamentos do Ceitec, tem o “filho do amigo de turma da Marinha”, como executivo, que ele não revelou quem é.

A visita ocorreu nas dependências da Ceitec no dia 5 de outubro de 2021. Porém, o Tribunal de Contas da União em sessão plenária do dia primeiro de setembro de 2021, mais de um mês antes, paralisou o processo de extinção da Ceitec. Então, não caberia ao liquidante durante esse período, receber visitas de empresas interessadas em conhecer equipamentos da estatal, que serão vendidos com a extinção dela.

É de se indagar: por que “um cliente nosso” só teve interesse em “conhecer” a sala do liquidante e o bandejão da estatal, depois que ela parou de operar e entregar chips necessários para a manutenção dos negócios desse mesmo “cliente”?

Estiveram naquela data nas dependências da Ceitec o superintendente Comercial e Operações da Valid S/A, Higrio Carvalho Urruth, além dos sócios e proprietários da CCRR RFID, Ricardo Zoghbi Coelho Lobo e Marcio Allegrini Muniz.

As duas empresas participaram em março de 2020 de uma consulta pública realizada pelos técnicos do PPI – Programa de Parceria de Investimentos, do Ministério da Economia, com cada uma das empresas separadamente, que tinha por objetivo saber do mercado de semicondutores se haveria algum interessado em comprar a Ceitec.

Nenhum demonstrou interesse na compra da empresa, como um todo, mas houve várias manifestações de interesse em comprar pedaços da estatal, já que o governo estava decidido a se livrar da Ceitec.

As que demonstraram o interesse tinham duas percepções distintas: ou queriam se livrar do fabricante estatal para ingressar com seus parceiros multinacionais no Brasil, ou tinham interesses nos equipamentos, porque com a extinção da Ceitec perderiam um “parceiro” que tinham em diversos projetos. As duas empresas que visitaram as dependências da Ceitec aparentam estar na segunda opção.

CCRR RFID

Para a CCRR, a extinção da Ceitec causa uma preocupação com relação ao chip para o pedágio. A estatal é fornecedora desses chips para ela, segundo a versão contada por Marcio Allegrini Muniz, que participou da audiência. O nome dele também consta agora na relação dos visitantes das instalações da Ceitec.

Na audiência com os técnicos do PPI, Marcio disse ainda que “a decisão governamental sobre o que fazer com a Ceitec influencia muito no interesse do mercado com relação ao ativo”.

No caso da CCRR, o interesse pela estatal teria como maior foco o chip do pedágio. Marcio Muniz chegou a sinalizar que “poderia buscar promover uma evolução tecnológica do produto ou mesmo um modelo de negócios via royalties”.

Sobre a estatal, em si, via com bons olhos a ideia de o governo transformá-la numa espécie de “Agência Reguladora”, já que a seu ver existiria na Ceitec “capital humano” com capacidade para exercer tal função no mercado.

Muniz também citou como possibilidade a Ceitec virar um ICT – Instituição de Pesquisa Cientifica e Tecnológica especifico para os produtos de IoT (Internet das Coisas). “Mas nesse caso a Ceitec não deveria restringir
somente aos seus produtos, abarcando também produtos de outras empresas do setor. E encerrou afirmando que entendia “ser mais difícil achar investidores com apetite para aquisição da Ceitec como um todo”.

Valid S/A

A empresa Valid S/A também foi consultada numa audiência pela equipe do PPI, para saber se teria interesse em comprar a Ceitec. A reunião também ocorreu no dia 3 de março de 2020.

Quem prestou informações pela Valid ao PPI foi o Superintendente Comercial Adriano Franki. Em termos gerais a empresa tem uma gama enorme de atuação no mercado. Segundo levantamento do PPI ela opera na “fabricação” de cartões de crédito e de débito, carteiras de habilitação, impressos de segurança, carteiras de identidade e processamento e emissão de documentos com impressos de segurança e prevenção a fraudes, logística de documentos e gestão de suprimento de produtos gráficos, smart cards.

Também atua no segmento de selos rastreáveis, contactless cards, certificados digitais, cheques, extratos bancários, sistemas de identificação biométrica, sistemas para modernização administrativa, aplicativos para internet banking, sistemas de gestão de assinaturas para operadoras de telefonia móvel, sistemas de armazenamento inteligente, serviços de rastreabilidade utilizando tecnologia RFID e contas de serviços de utilidade publica.

Adriano Franki disse que o relacionamento com a CEITEC veio desde 2010 e com foco em RFID, porem pautado na compra do chip e não no encapsulamento (usam o chip da CEITEC para rastreabilidade dos cartuchos de impressoras). A Ceitec era fundamental para o projeto da Valid nessa área.

Contou na época que a Valid tinha a liderança Sim Card e a tecnologia dominante atualmente, sendo que a Valid tem a lideranca do setor com o uso de chips para diversas aplicações descritas acima e achava que no segmento de RFID havia boas perspectivas de crescimento (crescimento do IoT) e que as manufaturas chinesas deviam aportar no Pais para tentar explorar o crescimento esperado. Citou a questão da rastreabilidade de produtos (potencial projeto dentro dos Correios para rastreamento de objetos), que a Ceitec já tinha fechado negócio, mas foi obrigada a cancelar quando veio a desestatização.

Mesmo na área de cartões de crédito e crescimento dos aplicativos moveis, Adriano disse que o governo já era “um importante cliente para a Valid”. Ou seja, o mesmo governo que extingue uma estatal parceira de uma empresa privada, era o maior comprador dos serviços desta mesma empresa privada.

O executivo disse ainda que a “Ceitec poderia ajudar na implementação e controle de protocolos de segurança, podendo ser uma facilitadora entre setor publico e privado”.

Para a Valid a importância da parceria com a Ceitec estava no fato dela garantir que a estrutura fabricação gozasse dos incentivos fiscais previstos pela Lei de Informática via PPB ( Processo Produtivo Básico), que “exige que chip venha de um fornecedor nacional”.

Sobre o “capital humano” da estatal, o executivo da Valid disse aos técnicos do PPI que via os funcionários da estatal “com bastante gabarito”. Porém, não opinou sobre a qualidade da sala limpa e os maquinários da Ceitec, embora tenha ressaltado que tinha conhecimento de que seriam necessários novos investimentos.

Neste ponto, Adriano Franki afirmou no relatório do PPI que, “o produto atualmente oferecido no PPB possui diferença de tamanho, preço e qualidade frente outros fornecedores internacionais, sendo que a Ceitec tinha preço pior, com qualidade inferior e tamanho maior”. Sendo assim, acreditava que a estatal necessitaria de uma “reformulação no parque fabril para tentar trazer chips cada vez menores e mais competitivos”.

Saiu do encontro com os técnicos do PPI afirmando que “precisaria avaliar o interesse da Valid sobre o ativo todo ou em partes. A principio não haveria interesse em investir na manipulação de silício, mas poderia avançar em uma parceria publico – privada para identificação de cidadãos, bem como do passaporte (melhor formato da parceria precisaria ser estudado)”.

E deixou a seguinte informação para o governo, que não foi levada em conta na época: “Com eventual liquidação da Ceitec, a Valid deixaria de ter um faturamento de 10% da sua ROL e teria que credenciar um novo fornecedor local para manter o PPB”.

Com a saia-justa criada pela Valid, os técnicos do PPI passaram a deduzir por eles próprios que a Valid não estaria preocupada com isso, ao afirmarem categoricamente em seu relatório que “não ficou perceptível um apelo grande pelo ativo, sempre focando muito o seu discurso com relação ao uso das verbas para fins do beneficio do PPB (Ceitec não é fornecedora estratégica para a Valid)”.

Um fabricante local com acesso aos incentivos fiscais da Lei de Informática (principal deles a redução do IPI cobrado na época com base nas vendas dentro do país) não teria interesse estratégico na Ceitec?

*Esse processo de extinção da Ceitec deveria acabar na polícia.