Vende-se casa por R$ 3 milhões!

Por Jeovani Salomão* –

– Ei menino, volte aqui para jogar aquele seu jogo.
– Mas, mãe, você disse para eu estudar.
– Isso foi antes. Como chama mesmo?
– O jogo?
– Sim, sim, meu filho.
– Fortnite.
– Esse mesmo, vai jogar, vai!

Este imaginário diálogo, apesar de absolutamente inusitado,  tornou-se mais provável após o ocorrido no dia 23 de março, momento no qual a primeira casa virtual “Mars House” (Casa de Marte, na tradução literal) foi vendida por quase 3 milhões de reais, com o uso de uma plataforma utilizada para produzir vários jogos de computador, inclusive o Fortnite, mencionado pela mãe fictícia.

Ressalte-se que o comprador da preciosidade consegue explorar o projeto arquitetônico tão somente com o uso de realidade virtual, ou seja, não pode tocar, caminhar e muito menos morar no bem adquirido. Trata-se, tão somente, de uma propriedade digital, imaterial, abstrata. 

Os autores da façanha, a artista canadense Krista Kim, ajudada por um arquiteto de software, utilizaram-se de uma marca digital, uma assinatura, que garante a legitimidade e a unicidade da obra. Curiosamente, tanto a moeda utilizada na transação – Ether, um tipo de dinheiro digital assemelhado ao já famoso bitcoin -, quanto o mencionado “selo” virtual, denominado non-fungible token (NFT), baseiam-se na mesma tecnologia: blockchain.

Se o imóvel fosse real, a transação precisaria ser realizada em um cartório no município onde ele se encontra. É desta maneira que as operações de compra e venda têm se realizado ao longo do tempo, com os primeiros registros históricos atribuídos ao Antigo Egito, em torno de 2.500 a.c. A complexidade aumenta bastante quando o bem é intangível, por várias razões incluindo jurisdição e segurança. Bom, mas se as tais “cadeias de blocos” são eficientes para garantir transações  financeiras, então certamente são suficientes para as relações comerciais de outros ativos virtuais.

No entanto, o NFT não nasceu apenas para garantir a transferência da posse, esta é, na verdade, apenas uma consequência. Seu maior objetivo é assegurar a procedência, a autoria, a exclusividade daquilo que é marcado pelo token. Para compreender melhor sua função, vamos para o universo da arte tradicional.

Em 15 de dezembro de 2017, a obra Salvator Mundi, de Leonardo da Vinci, foi vendida por U$ 450,3 milhões em um leilão em Nova York, um recorde de preço. Se você quiser, pode encontrar fotografias com alta resolução da pintura na internet e imprimi-las ou, ainda, pode comprar uma falsificação, bem como pode contratar um artista para plagiar o quadro. Infelizmente, nenhuma destas opções vai proporcionar algo de preço elevado, muito embora a beleza estética possa ser reproduzida nos mínimos detalhes.

A raridade do objeto original é que o torna valioso, por isso, é imprescindível diferenciar a produção legítima de suas cópias. Se houvesse uma assinatura inviolável, teríamos como separar facilmente a verdadeira das falsas, o que seria um grande alívio para os colecionadores . É exatamente este o papel do NTF para o ambiente virtual. Caso tal funcionalidade pudesse ser reproduzida no mundo real com precisão, evitaria, por exemplo, a polêmica envolvendo a venda do quadro em referência, cuja autoria do gênio renascentista é contestada por especialistas. 

O entendimento completo do conceito do NTF depende, também, da assimilação do significado de não-fungível, oposto de fungível, o qual é bem mais fácil de explicar. Uma nota de 200 reais é fungível, você pode trocar por outra exatamente igual e a nova vai possuir o mesmo valor, importância, qualidade e utilidade da anterior. Um objeto qualquer da sua casa, a princípio, é fungível, a menos que ele tenha ganhado alguma característica peculiar, funcional ou emotiva, durante o uso.

Na minha sala, além dos móveis e algumas poucas decorações, tenho um painel que comprei em uma viagem para a Polônia. Recentemente, para uma ocasião especial, ele foi transferido provisoriamente para outro lugar e tive a oportunidade de contemplar novamente sua beleza, que as vezes passa despercebida pelas vistas acostumadas com o cenário. Somente o trocaria pelo Salvator Mundi por uma questão financeira, mas rigorosamente um e outro não são intercambiáveis entre si ou por qualquer outra obra. Cada uma guarda suas características únicas, motivo pelo qual, são não-fungíveis.

Nunca joguei Fortnite, apesar de gostar de jogos e já ter visto meus filhos jogando. Em minha infância sequer era possível imaginar este tipo de diversão. Já na vida adulta, tenho certa dificuldade para compreender os valores estratosféricos de algumas obras de arte. Sendo assim, você pode imaginar, que não me é simples entender o porquê alguém pagou mais de 15 milhões de reais para obter o primeiro tuíte de Jack Dorsey,  fundador do Twitter, evidentemente com autoria garantida por um token digital; muito menos os valores exorbitantes da casa mencionada neste artigo. Em compensação, consigo absorver com clareza a importância do  NFT, o qual, muito brevemente, fará parte do nosso cotidiano. Afinal cada um de nós quer garantir para si aquilo que tem significado especial e único, seja tangível ou intangível.

*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.