Superficial

Por Jeovani Salomão*   Em algum ano do começo da década passada, fui com meu sócio e as respectivas esposas em uma feira de tecnologia em Hannover, na Alemanha. Conseguimos conciliar as agendas profissionais com um pouco de turismo e visitamos também Berlim e Frankfurt. As mulheres, com mais tempo livre, conheceram ainda a cidade de Colônia e sua famosa catedral.

Os pavilhões de exposição da cidade sede da feira são enormes e muito bem organizados, abrigando  eventos de diversos setores. Por sinal, esta é uma das principais atividades econômicas do local que se estruturou adequadamente para receber os turistas de negócios.

Nunca tive familiaridade com a língua germânica, tampouco facilidade em absorvê-la. Mesmo já tendo visitado o país várias vezes, conheço apenas um número reduzido de palavras. Justamente por causa dos pavilhões da feira, e a correspondência efetuada com o inglês, aprendi o significado de “eingang” e de “ausgang”, respectivamente, entrada e saída.

Para fazer o translado de Hannover para Frankfurt, alugamos um carro com antecedência. No dia da viagem, descobrimos que o mesmo ficava estacionado a poucos metros do hotel onde estávamos, em um edifício garagem. Subimos, eu e meu sócio, até o andar onde estava nosso veículo e combinamos que eu iria dirigir e ele olhar as placas para descobrimos a saída. Achamos o carro facilmente, pois estava bem próximo ao elevador. O ínfimo repertório de conhecimento de alemão seria útil neste momento, bastava seguir as placas de “ausgang”.

E assim fizemos, fomos na direção das placas de “ausgang” e, para nossa surpresa, depois de 3 ou 4 voltamos para o mesmo lugar! Repetimos o processo mais uma vez, avaliando que deveríamos ter nos confundido com alguma indicação, porém o resultado foi o mesmo,  retornamos para a vaga perto do elevador. Decidimos então desconsiderar as placas, afinal alemão não é mesmo para qualquer um, e encontramos a saída por conta própria.

Durante a viagem de carro, percebi algo minimamente curioso, várias placas com a palavra “ausfahrt” apareceram no trajeto, exatamente quando havia opções de sair da estrada principal para acessar uma cidade ou outras pistas. A ficha caiu, “ausgang” significa saída sim, mas não qualquer uma, apenas saída de pedestres. Na garagem, seguimos as placas erradas e, por tal razão, sempre voltávamos para o elevador. Para saída de carro, a palavra é “ausfahrt”.

Meu processo de aprendizado foi falho, uma vez que adotei um paradigma da minha língua nativa. A literalidade dos alemães inseriu na formação da palavra, que representa o conceito de sair, o objeto ou pessoa que está cometendo o ato. Caso eu fosse um estudante da língua, por certo, teria trabalhado o assunto de maneira mais consistente e não teria assimilado um conhecimento falso pela superficialidade do meu esforço. No presente caso, a confusão rendeu apenas uma história engraçada, mas consequências mais graves podem ocorrer com temas de maior relevância.

A propagação de informações pela rede mundial de computadores é responsável por uma modificação no processo de aprendizado. Como o acesso é muito fácil e rápido, qualquer um pode descobrir e emitir opinião sobre qualquer assunto. Sob o aspecto lúdico, tal comportamento é ótimo, pois aumenta a amplitude daquilo que se pode comentar em conversas informais.

Quase todo brasileiro, por exemplo, já se considera um exímio técnico de futebol. Tal sentimento é aflorado em momentos como agora, em que o Brasil perdeu a final da Copa América para a arquirrival, a Argentina. As conversas sobre o esporte, com o apoio da Internet, podem trazer para um ou outro indivíduo uma falsa autoridade, obtida por meio de análises rasas ou a reprodução de estatísticas que pouco se compreende. O saldo, neste caso, em geral, é uma conversa mais animada e, possivelmente, divertida, caso os ânimos não se exaltem.

Se os experts doutorados pelo Google parassem no lazer, estaria tudo bem. Ocorre que o mesmo fenômeno tem avançado em assuntos mais complexos e cujos impactos são muito maiores. Temas como saúde, tributação, infraestrutura, compras públicas e aspectos da tecnologia, como o caso marcante das urnas eletrônicas, são alvo de debates completamente desequilibrados e com consequências graves.

Os grupos de WhatsApp constituem um campo fértil para tais discussões. Em geral, um grupo tem uma afinidade que conecta seus participantes. Família, amigos de infância, da época da escola, dos hobbies, de negócios e de trabalho são ocorrências comuns. É  possível, assim como acontece no meu caso, que em sua família haja um PHD (aquele de verdade, que fez graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado) discutindo sobre sua área de domínio de conhecimento com outro membro família que leu uma Fake News em um site e, por incrível que pareça, considera-se um especialista no assunto.

Espero que ao ler este artigo você não esteja com dor de dente, nem que o seu carro esteja quebrado, muito menos que você ou algum parente esteja acometido de alguma doença. Se, infelizmente, algo desta natureza estiver acontecendo, devo torcer para que, guiado pelo bom senso, você procure um dentista, um mecânico ou um médico, conforme o caso. Sei que parece mais difícil, mas se você quer compreender sobre urnas eletrônicas, licenciamento ambiental, vacinas ou concessões de infraestruturas de transporte, penso que é melhor escutar os especialistas do que ler as manchetes propagadas pelas mídias ou por pessoas com interesses meramente eleitorais.

*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.