É curioso como o terceiro Governo Lula – que tem um viés ideológico de proteger as principais bases de dados federais nas estatais de TI – mas ainda ainda não assumiu, já interfere no mercado privado de nuvem pelas mãos dos atuais integrantes do Governo Bolsonaro. O Ministério da Saúde, do atual governo, acaba de fazer uma manobra para favorecer o Serpro, que poderá impactar futuramente os contratos com empresas privadas deste segmento, obtidos pela nuvem federal criada pela atual Secretaria de Governo Digital (SGD) do Ministério da Economia.
Mais um elemento na confusa concorrência que sempre existiu dentro do Governo Bolsonaro, que manteve duas nuvens com serviços prestados em paralelo pelos mesmos provedores privados, mas com preços diferentes: a nuvem do Serpro e a nuvem da SGD.
Hoje saiu no Diário Oficial da União um novo contrato do Ministério da Saúde de “solução integrada de tecnologia da informação, consistindo na prestação de serviços gerenciados de computação em nuvem por meio de cloud broker (integrador), sob o modelo de multinuvem”, a ser prestado pelo Serpro ao custo de R$ 32.094.474,48.
Ocorre que o ministério já tem um contrato de multinuvem com a AWS sendo o provedor e o “broker” a Extreme Digital Solutions (EDS). Esse contrato foi assinado pelo Datasus após pregão realizado pela Secretaria de Governo Digital (SGD), que deveria ser no modelo “nuvem federal”, até ser atropelada na mesma direção pela estatal.
Não está claro se pela nova contratação de um broker estatal no Ministério da Saúde o órgão irá migrar a conta para o Serpro, mas podem podem fazer isto. O Serpro tem no contrato deles a liberdade para oferecer serviços da AWS que quiserem e pelo preço que quiserem.
Mesmo sabendo que os contratos são distintos (o Datasus não contratou serviços de operação e sustentação, só nuvem, pelo pregão da SGD) fica a dúvida sobre o motivo da pasta não ter aditivado o atual contrato com a EDS para embutir as novas demandas, ao invés de chamar um novo broker estatal para bater cabeça com uma empresa privada dentro do ministério.
O Serpro se vale de uma velha argumentação junto aos gestores públicos, de que o benefício deles dispensarem a licitação acaba poupando aborrecimentos nas contratações ocasionadas em licitações. Obviamente o gestor que não quer problemas e tem pressa de mostrar serviço para os “chefes”, acaba optando por pagar mais caro para o Serpro a ter que chamar o mercado privado para uma disputa pelo melhor preço.
Mesmo a desculpa da “soberania dos dados” é questionável no mercado. Não só as nuvens públicas mantêm os dados em data centers no Brasil, atendendo toda a legislação em vigor, como a AWS (Huawei e Microsoft também tem similares) dispõe de solução de nuvem privada (Outposts), que é possível manter os dados dos sistemas dentro do data center do próprio órgão. Basta conferir isso na página do provedor:
https://aws.amazon.com/pt/outposts/
Essa lógica de contratar direto de uma estatal acaba tendo um preço, que sai mais caro para o gestor. No caso do Serpro isso ficou evidenciado pelas suas próprias propostas de preços cobrados por serviços feitos a diversos órgãos, que este blog teve acesso. Basta conferir que o contrato publicado hoje com o Serpro, a estatal está cobrando R$ 32 milhões, quanto o Ministério da Saúde tem um com a EDS no valor de R$ 2,8 milhões.
Abaixo, um exemplo da proposta da empresa pública feita a um cliente da SGD (não é o Ministério da Saúde), cujo preço é bastante salgado em função dos “benefícios” que são propostos. Por exemplo, o Serpro cobra R$ 10 mil à título de “intermediário” na operação comercial. Além disso cobra “consultoria de R$ 1.297,00. Valores que não estão embutidos nas propostas da SGD.
Então qual a vantagem em ter dois brokers numa nuvem que será prestada possivelmente pelo mesmo provedor, mas com preços tão desiguais? Para o contribuinte que paga essa conta, certamente nenhuma.
Há ainda algumas questões a serem esclarecidas. Por que no dia 28 de dezembro, a apenas três dias da entrada do novo governo, sai um contrato sem licitação (o Serpro goza da contratação direta) de R$ 32 milhões, sem que haja no horizonte próximo nenhuma emergência justificável? Isso foi combinado com a TI do novo governo, que ninguém sabe ainda quem será?
A movimentação parece fazer parte de uma estratégia que o Serpro e a Dataprev construíram já visando o próximo governo, de terem uma reserva de mercado nos serviços de TI da Administração pública federal. Mesmo que só atuem como intermediárias, já que quem põe a mão na massa são as empresas privadas, as mesmas que elas querem escantear.
Basta verificar essa estratégia após a aprovação do substitutivo do relator, deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA), ao Projeto de Lei 2270/21, do deputado André Figueiredo (PDT-CE), na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados, cujo objetivo é claramente criar essa reserva de mercado para as estatais.
*Resta saber o que o novo governo terá a declarar futuramente, quando for avaliar a situação da nuvem governamental. O Serpro é uma estatal fundamental para o desenvolvimento e a manutenção das operações de governo. Mas o discurso de que a iniciativa privada não deve atuar no mercado governamental, seja por questões de segurança ou soberania dos dados, ou seja na relação custo/benefício para o contribuinte é uma falácia. O mundo mudou, resta saber se o novo governo também ou ainda mantém ideias concebidas há mais de 20 anos. No setor de Telecomunicações já temos uma triste prévia do que virá. Resta saber se será o mesmo na área Tecnologia da Informação.