O mercado brasileiro composto por poucas empresas que tentam vender serviços de nuvem aos órgãos do governo, foi sacudido com um anúncio feito há dias pelo presidente do Serpro, Caio Paes de Andrade, no LinkedIn. A estatal dispõe agora da sua “MultiCloud” e pretende brigar por todos os contratos no setor público, graças à dispensa de licitação prevista na Lei das Licitações (8.666).
Prestar serviços ao governo é papel do Serpro; o que justifica a sua existência por mais de 50 anos. O problema é o Serpro ter adotado a postura de ser um “intermediário”, para garantir às multinacionais acesso a contratos com o governo através da dispensa de licitação, um privilégio que até agora somente era concedido à estatal.
Com um detalhe: impedindo empresas brasileiras, que também representam concorrentes lá fora dessas gigantes multinacionais, de participarem da MultiCloud.
“Fiz uma apresentação no ano passado para a diretoria, tinha serviços iguais às dessas multinacionais, mas depois dessa apresentação nunca mais fui chamado para apresentar o meu projeto. Só leio os acordos que eles fazem com essas empresas”, disse um diretor de uma dessas empresas nacionais.
“Eu não consegui nem falar com um superintendente do Serpro. Ligo para lá pedindo uma audiência e nem sequer querem agendar um encontro. Eles só abrem suas agendas para as gigantes norte-americanas. Para o “Pacu” (Paulo Cunha, diretor da AWS no Brasil) eles participam até de “lives”. Acreditei que esse governo fosse diferente de tantos outros, não é”, reagiu indignado outro empresário do setor.
Este site procurou ouvir a presidência da Assespro sobre essa questão, já que supostamente defenderia as empresas nacionais, mas a “autoridade” não quis se pronunciar. Nem mesmo para informar sobre o andamento da sua Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4829), que misteriosamente está paralisada no Supremo Tribunal Federal desde 2014, à espera de um pronunciamento do Plenário. Nela a Assespro contesta o privilégio da dispensa de licitação concedido ao Serpro em contratos com órgãos federais.
Brecha na Lei das Estatais
E já se tornou recorrente essa prática de “parcerias”, que acabam viabilizando contratos sem licitação no governo, graças a uma brecha encontrada na Lei das Estatais (Nº13.303/2016). As estatais estão se valendo, sem contestação dos organismos de controle, do Artigo 28, parágrafo 3º, inciso 2º, que asseguraria a formação dessas parcerias.
Basicamente as empresas públicas estão se valendo do inciso segundo, que diz: “nos casos em que a escolha do parceiro esteja associada a suas características particulares, vinculada a oportunidades de negócio definidas e específicas, justificada a inviabilidade de procedimento competitivo”.
Ora, como não há viabilidade de “procedimento competitivo” para a escolha do prestador de serviços inerentes à um projeto de nuvem? Em 2018 o extinto Ministério do Planejamento realizou um polêmico pregão, justamente para a escolha de um parceiro para o projeto de nuvem federal. O que mudou de lá para cá na legislação de compras e não teve a devida publicidade oficial?
O Serpro alega que chama empresas para cotarem serviços e escolhe a mais vantajosa. Indaga-se: alguém já viu isso? Foi em algum pregão, igual ao do extinto Ministério do Planejamento? Ao que se tem notícias, a estatal apenas faz uma “consulta pública”, um mero “cineminha” para referendar que fez a escolha do seu parceiro ideal.
Dança das cadeiras
O Serpro já era “parceiro” do Google desde 2018 e chegou a utilizar toda a suíte de aplicativos dessa multinacional, com exceção do serviço de e-mail. Criou até o projeto “Teams”, que anda sumido do mapa, assim como a presença da própria multinacional.
A partir do ano passado, misteriosamente a AWS (Amazon Web Services) passou a gozar de um prestígio fora do comum dentro da empresa, notadamente com o diretor de Operações, General Antonino Guerra.
Ao ponto de ser a primeira empresa anunciada no projeto “MultiCloud”, em que o Serpro pagará pelos serviços fixos de nuvem prestados por ela a bagatela de R$ 71 milhões. Teve até coletiva de imprensa (a que convém à Comunicação do Serpro) para anunciar a façanha, que contou com as presenças ilustres do General Guerra e do presidente, Caio Paes de Andrade.
Mais recentemente o Serpro anunciou o fechamento da mesma “parceria” com a IBM, sem festa, que também prestará os mesmos serviços na “MultiCloud” ao custo fixo de R$ 73 milhões. Em ambos os casos prevaleceu a tese contida na Lei 13.303, da “inviabilidade de procedimento competitivo”.
Agressividade
A estatal adotou uma postura agressiva no mercado governamental. Chega a lembrar que o órgão que contratar com ela, dispensará a trabalheira de realizar uma licitação. Não é nenhuma novidade isso, tanto que a Assespro questiona esse benefício no STF. Porém, lembrar isso agora, depois de tantos anos gozando desse privilégio legal, parece uma mensagem cifrada aos futuros clientes, do tipo: “me contrate, que eu levo para você a nuvem da empresa que você escolher, sem você precisar se dar ao trabalho de fazer uma licitação”.
Que nome se dá a esse tipo de procedimento? Barriga de Aluguel?
Transparência
Onde estão os contratos assinados com essas empresas? Quanto o Serpro espera ganhar com esses acordos para a sua “MultiCloud”, já que não revelados publicamente? Ao servir de janela para essas empresas abocanharem novos contratos dentro do governo, sem terem de disputar licitação, o negócio torna-se muito lucrativo. Para elas.
Porque o Serpro além de pagar o custo fixo do contrato que é obrigado a informar publicamente, provavelmente também desembolsará pelo uso de licenças de softwares e serviços paralelos prestados pelas multinacionais. Detalhe: a fatura virá em dólar. Essa parte da “parceria” entre a estatal e as empresas nunca é revelado, sob o argumento do “sigilo comercial”.
Curioso, neste caso, é que a “nuvem federal” do extinto Ministério do Planejamento, que hoje faz parte do Ministério da Economia, custou aos cofres públicos R$ 29 milhões. Valor obtido num pregão bastante disputado e que chegou a travar no judiciário, mas saiu. No fim, ele pode ter sido polêmico, cheio de problemas, mas o preço saiu muito mais barato do que os dois contratos anunciados agora pelo Serpro.
Curiosamente, entre os players vencedores daquele certame do Ministério do Planejamento estava a AWS, que assinou contrato com o governo tendo como parceiro a Primesys/Embratel. É de se perguntar, então, por que o governo paga bem mais barato para a AWS na “nuvem federal” e somente na parte fixada em contrato com o Serpro serão desembolsados R$ 71 milhões?
A AWS estaria descontando o prejuízo que teve no contrato com o extinto Ministério do Planejamento, por conta da inesperada disparada do dólar durante o período de vigência dele?
Recentemente a Secretaria de Governo Digital (SGD), do Ministério da Economia, anunciou um novo pregão que dará continuidade ao projeto da “nuvem federal” anterior. Qual a expectativa que se faz agora em relação aos preços entre duas nuvens distintas que, em instância final, servirão ao mesmo senhor: o governo?
Falta alguém do governo habilitado explicar o por quê de duas “MultiClouds” concorrendo em paralelo dentro do governo, praticamente com as mesmas empresas, oferecendo os mesmos serviços aos mesmos órgãos federais.
*Tem algo de podre, inclusive o silêncio de entidades do setor e dos organismos de controle, nessa história. Mas um dia a casa cai.