Redes sociais, Multidões e Civilização x Barbárie

Por Flávia Lefèvre* – Preparei esse texto para orientar minha fala no evento do lançamento do livro pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (CTS- FGV-RJ) – “Moderação de Conteúdo Online – contexto, cenário brasileiro e suas perspectivas regulatórias”, contribuição essencial no momento político que atravessamos, que coloca o Brasil em situação de urgência para a adoção de medidas voltadas para o enfrentamento da desinformação e sua influência maléfica, resultando em danos profundos nas instituições democráticas e na formação de comportamentos e de consciência política dos cidadãos.

O livro vem neste momento crucial em que o novo Governo anuncia a edição de um Pacote para a Democracia, com riscos de se adotarem medidas estruturadas no calor das invasões golpistas de 8 de janeiro deste ano por uma horda de vândalos mobilizados principalmente via redes sociais.

A obra lança luz sobre os debates que estão em curso, no Brasil e em outros países, a respeito da necessidade e desafios para se regular a atuação das plataformas que atuam na Internet e suas práticas comerciais algorítmicas para gerenciamento de conteúdos.

Sem medo de estar exagerando, civilização versus barbárie é o impasse que nos tem sido colocado dia a dia, no Brasil e no mundo, nos âmbitos políticos e institucionais, promovido pelo avanço do neoliberalismo e das forças reacionárias a partir especialmente dos anos 80. Nesse contexto, o avanço dos modelos de negócios das plataformas que prestam serviços na Internet, estruturados sobre big data e práticas algorítmicas para o controle do fluxo de informações, com capacidade de formação de perfis para a criação de bolhas, tem contribuído de forma determinante para o declínio de direitos sociais, de conquistas civilizatórias e para o crescimento da desinformação, discursos de ódio e práticas reiterada de crimes.

Essas plataformas e suas práticas de gerenciamento de conteúdos, para além de amplificarem ou reduzirem a vizibilidade de publicações, também propiciam a formação de multidões, que, segundo estudos ao longo da história, é um fenômeno invariavelmente associado à violência, irracionalidade, primitivismo e cegueira, como nos permite concluir eventos como o nazismo, e um exemplo mais perto e recente, o ataque às sedes dos 3 Poderes em Brasília no último dia 8 de janeiro.

Essa dinâmica de formação de multidões on line, resultado do uso competente pela extrema direita das diversas aplicações de Internet para a difusão de informação, pelas redes sociais, mecanismos de buscas e plataformas de vídeos está muito bem identificará no livro “Linguagem da Destruição – a democracia brasileira em crise”, de Heloisa Starling, Miguel Lago e Newton Bignoto”. No capítulo “Como explicar a resiliência de Bolsonaro?”, Miguel Lago nos traz o seguinte:

“Gustave Le Bon em seu célebre livro La Psycchologie dês Foules (1895): “As multidões assemelham-se, de certo modo, à esfinge da antiga fábula. É necessário chegar a uma solução dos problemas oferecidos por sua psicologia ou então nos resignamos a ser devorados por elas”, ou, ainda, “pelo simples fato de fazer parte de uma multidão organizada, um homem desce vários degraus da civilização. Isolado, ele pode ser um indivíduo culto; na multidão, é um bárbaro, isto é, uma criatura que age por instinto”. A ideia de “multidão” descrita por Le Bon e por outros autores da mesma época está sempre associada a termos como “violência”, “destruição”, “irracionalidade”, “declínio”, “cegueira”, “ferocidade”, “erro”, “primitivismo”. Le Bon define o raciocínio das “massas” como distante do raciocínio lógico – que é o raciocínio do indivíduo. Sobre o “raciocínio inferior das multidões”, afirma consistir “na associação de coisas dessemelhantes, que possuem uma conexão meramente entre si”. Será preciso chegar aos anos 1920 para que esse a priori de tratar as massas como patologia seja revisto por Sigmund Freud, como bem lembra Newton Bignotto no capitulo 3 deste livro”.

Nessa esteira, temos de reconhecer que as plataformas que prestam serviços na Internet têm se mostrado como territórios férteis para a formação de multidões, bem como para as estratégias de desinformação com vistas a mobilizar, influenciar e modular comportamentos e formação de opiniões, pela exploração descolada de princípios éticos e de finalidades voltadas para o interesse público, usurpando nossos desejos, medos e toda a espécie de vulnerabilidades.

Esse fenômeno ficou muito evidente não só em processos eleitorais, como as eleições de Trump em 2016 e de Bolsonaro em 2018, a ponto de estes casos terem sido estudados particularmente nas obras “Como as Democracias Morrem” (Levitsky e Ziblatt) e “Os Engenheiros do Caos” (Giuliano da Empoli), mas também durante a pandemia, afetando gravemente a saúde pública, com processos financiados por forças de direita ligadas aos movimentos anti-vacina e promovendo medicamentos sem eficácia; a ponto de a Organização Pan-Americana de Saúde ter introduzido o conceito de infodemia, se referindo a “um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que pode se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual. Nessa situação surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa. Na era da informação, esse fenômeno é amplificado pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus”.

Estudo publicado em junho de 2022, por Claudia Galhardi e Maria Cecília de Souza Minayo da Fiocruz, Isabel Cristina Kowal Olm Cunha da Unifesp e Maria Clara Marque da UFF, mostra que as notícias falsas a respeito da Covid-19 em 2020 estavam presentes em todas as plataformas, mas especialmente no Instagram – 10,5%; no Facebook – 15,8% e WhatsApp – 73,7% – todas aplicações da Meta.

O WhatsApp também foi a principal aplicação utilizada para a veiculação de notícias falsas durante os processos eleitorais, favorecendo especialmente as forças reacionárias, em 2018 e 2022, com efeitos danosos em larga escala, apesar das iniciativas do Tribunal Superior Eleitoral, sendo importante destacar o efeito cruzado da utilização de cortes de vídeos de canais de direita no Youtube, como no caso Jovem Pan e Brasil Paralelo, como mostrou a pesquisa do NetLab da UFRJ.

O CTS, para além do livro lançado, tem publicado uma série de estudos a respeito do tema, mostrando que a difusão da informação e desinformação pelas empresas que prestam serviços na Internet é um dos fenômenos contemporâneos mais relevantes, com efeitos danosos para indivíduos, para a coletividade e para o funcionamento da democracia.

Diante do atual cenário, não é razoável defender que o enfrentamento e a tarefa de conter a desinformação e o cometimento de crimes na rede possam ficar a cargo exclusivamente das empresas privadas – as 10 maiores estadunidenses – e suas práticas algorítmicas de moderação de conteúdos, pautadas principalmente por acordos comerciais e bastante complexas. Além disso, protegidas pela forte resistência das empresas em se submeterem a obrigações de transparência, alegando segredo industrial entre outras justificativas desarrazoadas.

O quadro atual indica também que é urgente a revisão da Lei Eleitoral – especialmente dos dispositivos introduzidos com a reforma de 2017, que privilegiou as plataformas como os principais palcos políticos para a propaganda eleitoral, como já comentei em outro post aqui no blog. Não foi à toa que o uso abusivo do WhatsApp para campanhas eleitorais ilegais começaram em 2018.

Ou seja, precisamos de uma lei que regule a atuação dessas empresas. Mas o desafio para se definir esta lei são enormes, na medida em que a regulação terá impactos diretos sobre direitos fundamentais como o a liberdade de expressão, o direito à informação, direitos políticos de eleitores, parlamentares e seus partidos, privacidade e proteção de dados pessoais, direitos econômicos das empresas envolvidas, entre outros. Apesar de alguns aspectos que merecem ser revistos, temos defendido a aprovação do PL 2630/2020, que se refere à Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, principalmente:

  • Os dispositivos que tratam das obrigações de transparência, com identificação de contas automatizadas e conteúdos pagos; a previsão de relatórios semestrais sobre suas práticas que impliquem a exclusão, indisponibilização, redução de alcance, sinalização de conteúdos e outras que restrinjam a liberdade de expressão;
  • A manutenção da natureza interpessoal dos serviços de mensageria, de modo a limitar a distribuição massiva de conteúdos;
  • Os procedimentos de devido processo no âmbito administrativo, para a defesa dos usuários dos serviços por violações à liberdade de expressão e censura, por exemplo;
  • As disposições sobre a atuação dos poderes públicos, estabelecendo parâmetros e limites para o uso das redes por agentes públicos;
  • Fomento à educação;
  • A previsão de sanções aplicáveis aos casos de descumprimento da lei;
  • Dada a forte dinâmica de evolução dessas tecnologias e seu largo espectro de impactos, a previsão envolvendo o Comitê Gestor da Internet no Brasil no processo de formulação do Código de Conduta, garantindo caráter multissetorial e multidisciplinar na definição das diretrizes a serem seguidas pelos termos de serviços, no regime de autorregulação regulada. Sobre o papel do CGI.br, indico outro post publicado aqui no blog.

Destaco também que as discussões a respeito de medidas regulatórias para o enfrentamento da desinformação não podem ignorar o caráter danoso e perverso dos planos de franquia associados a zero rating, responsáveis pelo fosso digital vergonhoso que ocorre no Brasil, por força do qual temos uma internet para os ricos e outra, com acessos indignos para os pobres, como destaquei em outro recente post aqui no blog, com desrespeito à neutralidade da rede e ao caráter essencial do serviço de conexão a Internet e o consequente direito à prestação ininterrupta do serviço.

Por fim, é importante fazer o alerta de que propostas marcadas pelo viés criminal e punitivista e descoladas dos processos multissetoriais, como está previsto no Marco Civil da Internet, e de discussões amplas e democráticas, com participação social, tendem a ineficácia e a injustiças, especialmente de se decidir penalizar a franja dos usuários e não os financiadores dos processos de desinformação.

* Flávia Lefèvre – Advogada e Mestre em Processo Civil pela PUC/SP.