Por Jeovani Salomão* – Maria Skłodowska nasceu em Varsóvia em 1867. Contra todas as probabilidades, conseguiu feitos notáveis que a imortalizaram. Foi a primeira mulher ganhadora do Nobel, a primeira pessoa que ganhou o prêmio duas vezes e a única que o fez em duas disciplinas diferentes, um em física (1903) e outro em química (1911). Foi, ainda, a primeira docente feminina da Universidade de Paris, descobridora de dois elementos químicos, Rádio e Polônio, além de ser a pessoa que cunhou o termo radioatividade, foi aquela que criou aparelhos de raio-X portáteis utilizados na primeira guerra, além dos princípios para o tratamento de câncer que resultaram no procedimento denominado radioterapia.
Talvez, caso o leitor seja conhecedor da história, esteja imaginando que os feitos mencionados são de Marie Curie e não da tal Maria, citada pelo texto. O fato é que nossa heroína polonesa foi naturalizada na França e ganhou o sobrenome por ter se casado com Pierre Curie, com o qual compartilhou o Nobel de física. Uma das filhas do casal, Irene Curie, juntamente com o marido, Frederic, também foi contemplada com o Nobel, em 1935, pela descoberta da radioatividade artificial.
Nossa protagonista empresta seu nome a institutos, museus, laboratórios, tratamentos e serve de inspiração para milhões. As implicações teóricas e práticas que derivam dos seus estudos possuem vasta influência sobre diversas tecnologias. No saldo, sem qualquer sombra de dúvida, uma pessoa com grande contribuição positiva para o planeta. Apesar dos merecidos louros, não podemos fechar os olhos para os efeitos colaterais decorrente das suas descobertas. A própria pesquisadora veio a falecer em 1934 de anemia aplástica, doença cuja a origem foi, justamente, exposição à radiação!
No filme Radioatividade, um romance que conta boa parte da vida adulta da cientista, são efetuadas várias associações com suas descobertas, inclusive, de forma não totalmente justa, mas bem dramática, com a bomba atômica que dizimou Hiroshima. Evidentemente, a produção relata muito mais benefícios que malefícios, o que reflete a realidade.
Os desdobramentos de uma descoberta científica são incalculáveis e imprevisíveis. Talvez, os criadores tenham alguma capacidade de antever alguns impactos, no entanto quanto mais o tempo avança e quanto mais poderoso é o conceito mais consequências são geradas. Sem que a maioria tenha se apercebido, entramos em um momento crítico sobre um ramo do conhecimento cujos potenciais de influência são infinitamente maiores que, por exemplo, a radioatividade.
A Inteligência Artificial – IA por décadas – sob o aspecto filosófico por centenas de anos – tem atraído esforços de pensadores, matemáticos, físicos, engenheiros e diversos outros cientistas. Ao contrário do que se poderia imaginar, não é uma disciplina recente, o fato é que nunca esteve tão aquecida como agora. A diferença entre passado e presente é a capacidade computacional para colocar em prática as teorias construídas até o momento. O avanço exponencial da matéria está chamando a atenção de vários expoentes mundiais, personalidades, setores, indústrias, organizações acadêmicas e países que alertam para os perigos do tema e para a necessidade de construção de modelos éticos para o uso da tecnologia.
Neste mês de julho, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações lançou a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial – EBIA, cujo objetivo é: “potencializar o desenvolvimento e a utilização da tecnologia com vistas a promover o avanço científico e solucionar problemas concretos do País, identificando áreas prioritárias nas quais há maior potencial de obtenção de benefícios.”
Por óbvio, os ganhos que se podem obter são imensos, mas como já aprendemos, é preciso lidar adequadamente com os efeitos colaterais negativos, os quais, no presente caso, são danosos a ponto de terem a capacidade de extinguir a raça humana, pelo menos na visão de alguns escritores de ficção científica.
A EBIA não se esquece deste ponto e, assim como diversos organismos internacionais, aponta para os cuidados éticos quando do desenvolvimento e utilização da disciplina: “Princípios éticos devem ser seguidos em todas as etapas de desenvolvimento e de uso da IA podendo, inclusive, serem elevados a requisitos normativos integrantes de todas as iniciativas governamentais quanto à IA.”
Paralelamente ao lançamento da EBIA, estão sendo discutidos, no congresso nacional, projetos para regulamentação da IA. O medo dos poderosos desdobramentos que podem advir do assunto já ronda as mais importantes casas, mas a verdade é que ninguém ainda sabe exatamente como barrar as implicações negativas. O mundo, conforme já mencionado, aponta para a necessidade de princípios éticos, tese com a qual todos concordam, o difícil é colocar em prática, fiscalizar, punir e destruir o que não está certo.
Quando se analisa indústrias que produzem algo tangível, como a de medicamentos, é possível estabelecer e cumprir critérios de segurança. Agências governamentais tem o poder de limitar as metodologias, os insumos, a pesquisa e a própria comercialização de remédios dentro de sua jurisdição. A propósito, o desenvolvimento de um novo fármaco envolve milhões, eventualmente, bilhões de reais, fator responsável pela redução do número de atores.
O ambiente de IA é totalmente diferente. Se Marie Curie com sua genialidade se dedicasse à área, apenas com alguns potentes computadores e acesso a softwares gratuitos, poderia construir avanços extraordinários, os quais, sob o aspecto daquele que tenta regular, seriam imperceptíveis, até que estivessem prontos e em pleno funcionamento. O que estou afirmando é que um indivíduo, desde que tenha um mínimo de talento, é capaz de avançar significativamente na disciplina sem depender de estruturas, equipes e investimentos exagerados. Ou seja, o desenvolvimento, ao contrário de outras invenções e setores, ocorrerá de forma muito mais diluída, fator que praticamente inviabiliza as regulações tais quais conhecemos hoje. Enquanto os algoritmos estiverem sendo direcionados pela vontade humana, talvez por ingenuidade ou excesso de otimismo, acredito que os benefícios serão maiores que os problemas, afinal insisto na crença que o bem, em geral, vence o mau. Ocorre que a IA é capaz de gerar novos códigos por si própria. Se os filhos concebidos ainda responderem à vontade do criador original humano, estaremos seguros. O perigo é se um dia algum descendente da IA criar consciência e tiver vontade própria. Neste caso, o propósito da máquina passa a ser o risco do homem.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.