Presságios e alertas

Por Demi Getschko (publicado no Link, do Estadão)- Há obras que assombravam nosso futuro, como 1984, Admirável Mundo Novo, Revolução dos Bichos e outras, mas hoje o que pode ser mais preocupante é a “normalização” de alguns dos seus conceitos. Talvez elas estivessem mais próximas da verdade do que da ficção. Quando, por exemplo, começou a moda de programas na TV que exibiam o dia a dia de participantes fechados em ambiente controlado, estilo “grande irmão”, imaginou-se que poderia haveria uma reação a esse monitoramento. Ele, além de monitorar os atos dos enclausurados, estimulava hipóteses sobre o que eles estariam ideando. Ocorreu o contrário: tornaram-se campeões de audiência. Os riscos à privacidade, ao invés de escandalizar o cidadão, passaram a ser um atrativo. Como diria o Barão de Itararé, pode ser um sintoma de que “há algo no ar, além dos aviões de carreira”…

Outro paralelo com 1984 é a tendência crescente a se interferir na linguagem diária. Sob diversos pretextos tenta-se mexer na língua que usamos, não da forma natural, dinâmica, com que as línguas mudam, mas compelindo “para o bem geral”. Vem à mente a “novilíngua” de Orwell. Não apenas pensamentos se expressam por linguagem, mas a própria linguagem modela os pensamentos e, se queremos impedir um pensamento “inadequado”, devemos atuar sobre a linguagem para que esse pensamento não possa sequer ser produzido. “… o objetivo principal da novilíngua e estreitar o campo do pensamento. Assim conseguiremos tornar o “crime de pensamento” praticamente impossível, porque não haverá palavras para expressá-lo”… Eliminar as complexidades e sutilezas da linguagem acaba por estropiar a própria capacidade humana de raciocinar.

A conexão com a Internet não está distante. Basta associar o poder de aplicativos que instalamos, aos montes e sem muito cuidado, em nossos dispositivos. Eles tem a capacidade potencial de vasculhar não apenas o que fazemos enquanto os utilizamos, mas nossas ações em geral. Acresça-se a eles a inteligância artificial!. Não é, claro, posicionar-se contra as facilidades e o conforto que trazem, mas alertar para uma análise crítica e vigilante sobre possíveis “efeitos colaterais”. Com o teletrabalho que a Covid pôs em tanta evidência, há no mercado diversos aplicativos que se destinam a “controlar a produtividade” dos funcionários que trabalham de casa. Afinal, como saber quantas horas, de fato, dedicaram à jornada remota? E alguns dos aplicativos não se restringem apenas a tentar definir o tempo de início e término da atividade, mas conseguem detectar se estamos nos “distraindo” com outras atividades locais da rede. Vários permitem, por exemplo, que se tire, de tempos em tempos, cópia da tela de nosso dispositivo, e sequer informam disso. Pode haver um “grande irmão” silenciosamente instalado no computador que usamos. Com todo um elenco de álibis para esse tipo de vigilantismo, uma clara violação de direitos, poderia passar despercebida, em segundo plano.

A funesta previsão orwelliana segue: “cada livro será reescrito, cada pintura refeita, cada estátua e rua renomeadas e cada data alterada”. Em Oceania, alterar o passado é uma possibilidade. “Quem controla o passado controla o futuro, e quem controla o presente, controla o passado”.

*Demi Getschko é engenheiro eletricista formado pela POLI/USP, com mestrado e doutorado em Engenharia, Conselheiro do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), Diretor-Presidente do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto br) e Professor Associado da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Foi membro da diretoria da ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) pela ccNSO (Country Code Names Support Organization). Em abril de 2014 foi eleito para o Hall da Fama da Internet na categoria “Conectores Globais”, com cerimônia realizada em Hong Kong. Em julho do mesmo ano foi agraciado com o prêmio “Cristina Tavares”, da Sociedade Brasileira de Computação. Em dezembro, no dia do Engenheiro, recebeu do Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo o prêmio “Personalidade da Tecnologia 2014”, na categoria “Internet” Em maio de 2016 foi admitido na Ordem do Mérito das Comunicações no “Grau de Oficial” como forma de reconhecimento aos seus serviços relevantes prestados às Comunicações. Editor chefe da Revista .br – publicação do Comitê Gestor da Internet no Brasil desde 2009; Desde 2014 escreve quinzenalmente para o Caderno Link – Editoria de tecnologia e cultura digital do jornal O Estado de S. Paulo e do portal Estadao.com.br.