Por Jeovani Salomão* – As decisões do STF – Supremo Tribunal Federal têm se tornado parte do nosso dia a dia. O Direito, enquanto disciplina, possui uma beleza especial e a sua disseminação tem enorme potencial benéfico para a sociedade, motivo pelo qual a popularização dos tribunais e suas decisões é extremamente bem-vinda.
No entanto, há que se preservar a separação dos poderes, de forma que um, em especial o judiciário, não invada os outros. O excesso de judicialização e o protagonismo do STF são preocupantes. Um amigo, tempos atrás, em tom de anedota, mencionou que quando o brasileiro sabe de cor o nome dos onze ministros do Supremo, mas não sabe a escalação da seleção brasileira de futebol, há algo de muito errado acontecendo.
Recentemente a polêmica dos bloqueios a aplicativos voltou a movimentar a corte máxima. Em uma decisão monocrática, o ilustre Ministro Alexandre de Moraes decidiu retirar contas do Facebook e do Twitter supostamente relacionadas à geração de notícias falsas. O fato gerou polêmica angariando defensores, que concordam que havia que se interromper “os discursos com conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”, e divergências que apontam para quebra da liberdade de expressão.
O uso da tecnologia, enquanto veículo de comunicação, amplia a complexidade desses debates, em particular quando aplicativos de mensageria e redes sociais atingem milhões de pessoas de forma simultânea. Quando estive na presidência da ASSESPRO, enfrentamos um viés do tema no STF, onde ingressamos em um processo, na condição de “amicus curiae”, para divergir dos bloqueios efetuados a aplicativos por tribunais de primeira instância. Em particular, o WhatsApp havia sido bloqueado, por mais de uma vez, sob a alegação de não contribuir com a justiça na apuração de processos judiciais. Fomos assessorados pelo brilhante ex-Ministro Ayres Britto e conseguimos uma vitória liminar que produziu efeitos positivos. Desde então nenhum bloqueio da mesma natureza ocorreu.
Uma interessante abordagem para o tema, seria imaginar uma situação sem os aplicativos e redes sociais e qual a decisão do STF nesse caso. Por hipótese, vamos supor que um cidadão que teve seu perfil bloqueado, ao invés de se manifestar virtualmente, fosse até uma praça, um palco, um jornal, ao rádio ou a TV e fizesse o tal discurso de ódio ou de subversão da ordem. Seria razoável impedir que esse cidadão repetisse o discurso no veículo que ele utilizou ou seria mais natural abrir um processo para punir o crime que eventualmente fora cometido? Caso ele tenha feito o discurso por carta, retiraríamos de imediato a caneta e o papel do indivíduo?
Há uma presunção na decisão do Supremo que, embora leigo, não me convence. Presume-se que um crime fora cometido, embora, até onde eu sei, não tenha sido julgado – pelo menos não com alguns dos perfis bloqueados, e, pior, que o infrator continuará a se utilizar da mídia da qual fez uso para reincidir no mesmo padrão de comportamento. Entre essa presunção e a liberdade de expressão, eu fico com a última por larga margem.
Por outro lado, há que se considerar que quando se utiliza o poder das mídias sociais com má-fé, os impactos podem ser severos e irreversíveis. Em passado recente, um determinado secretário de estado foi acusado de problemas de desvio financeiro em plena pandemia. Ato contínuo, circulou um vídeo com policiais federais encontrando enorme quantidade de dinheiro em seu apartamento. Era Fake News, mas a imagem do secretário dificilmente será recuperada. Há também casos de destruição de opositores políticos na véspera das eleições, com acusações mentirosas e gravíssimas de pedofilia e outros crimes deploráveis. Não há tempo de reação e nem forma de reparação. Dada a alta complexidade, manifesto a ausência de qualquer pretensão nesse artigo de esgotar o tema, ou encontrar soluções procedimentais para o equilíbrio, mas sim de marcar uma posição sólida contra a censura e a favor do direito de se manifestar livremente, desde que não se incorra em crime.
Ressalto, que da minha parte, não há qualquer influência política na opinião que expresso. Postei, recentemente, nas redes sociais, afirmando que o Brasil vive uma pandemia, paralela à COVID, de intolerância às opções políticas. Erroneamente, simpatizantes de um ou de outro lado têm efetuado julgamentos sobre o caráter e a capacidade de gestão de indivíduos, simplesmente pela linha política escolhida pelo tal. Se a pessoa é de direita e apoiadora do Governo atual, todos aqueles que são de esquerda são desonestos, corruptos e incompetentes. Se a pessoa é de esquerda e apoiadora do Governo anterior, todos aqueles que são de direita é que tem os atributos malfadados. Em um momento mais sóbrio e equilibrado, tais estereótipos seriam rechaçados prontamente.
Dito isso, ressalto que sou contra a decisão proferida não por defender um grupo ou uma ideologia política, mas sim porque ela fere a liberdade de expressão. Teria a mesma opinião se os perseguidos fossem outros, com outras preferências políticas.
Enquanto produzo o artigo o assunto cria novos contornos, na medida que outros Ministros começam a se manifestar, a exemplo da Ilustre Ministra Carmem Lúcia, que equilibradamente disse que “Não tenho nenhuma dúvida que se o Estado não pode fazer censura, plataformas digitais também não podem. Particular nenhum pode. Porque não pode calar o outro, não existe o ‘cala boca´”, bem como “O desafio está nisso: a ponderação necessária para que nem se cerceie a liberdade, nem se faça desses espaços nichos possíveis de acolherem práticas criminosas”. Paralelamente, o Facebook inicialmente se negou a bloquear as contas globalmente, alegando que respeita as leis de cada país que atua e, portanto, há que se respeitar cada jurisdição, não havendo a possibilidade de uma lei nacional ser aplicada a outra nação. Em seguida, reformulou seu posicionamento.
O debate será longo, repleto de contraditórios, e com potencial de moldar usos e costumes da sociedade. Sei que é otimismo exagerado da minha parte, mas meu pedido é: vamos deixar de lado o viés político-eleitoral e vamos decidir o que é melhor para o Brasil.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.