Por Paulo Marcelo* – Existe quase um consenso em todos os setores de que o mundo pós-pandemia não será o mesmo que conhecíamos antes. O impacto já pode ser sentido em vários setores e, no financeiro, não é diferente. Um estudo divulgado no início de abril pelo BIS (Bank for International Settlements) trata justamente das mudanças que começam a ser percebidas quando se fala em pagamentos.
Isso porque a pandemia do Covid-19 trouxe uma série de preocupações públicas de que o coronavírus poderia ser transmitido pelo dinheiro, cédulas e moedas. Estas preocupações foram tão fortes que vários bancos centrais ao redor do mundo comunicaram ativamente que os riscos de contaminação por este meio eram baixos. Em seu estudo, o BIS lembra que o Banco da Inglaterra observou que “o risco representado pelo manuseio de uma nota de polímero não é maior do que tocar em outras superfícies comuns, como corrimãos, maçanetas ou cartões de crédito”.
O estudo cita ainda o Bundesbank, que aconselhou o público de que os riscos de transmissão através de notas são mínimos; o Banco do Canadá, que pediu que os varejistas parassem de recusar pagamentos em dinheiro; e o Banco de Reserva da África do Sul, que neutralizou golpes esclarecendo que não há evidência de transmissão em dinheiro e não está retirando dinheiro da circulação.
O movimento segue com outros bancos centrais. O BIS relata que o Banco Popular da China começou em fevereiro a esterilizar notas nas regiões afetadas pelo vírus. No início de março, o FED confirmou que estava colocando em quarentena dinheiro proveniente da Ásia antes da recirculação. Além disso, os bancos centrais na Coréia do Sul, Hungria, Kuwait e outros países também passaram a esterilizar ou colocar em quarentena as notas, garantindo que o dinheiro que sai dos centros monetários não esteja contaminado, e os bancos centrais ou governos da Índia, Indonésia, Geórgia e vários outros países têm incentivado pagamentos sem dinheiro.
O fato é que, independente destas ações, a percepção de que o dinheiro pode estar contaminado pode alterar o comportamento de pagamento, tanto por pessoas físicas quanto jurídicas. No Brasil, onde os pagamentos eletrônicos vêm crescendo ano após ano, esse movimento parece estar mais à frente. Dados da Febraban apontam que a fatia do mobile banking na composição do total de transações aumentou de 35% em 2017 para 40% em 2018. Em conjunto, os canais digitais ampliaram a sua participação em relação aos canais tradicionais: seis em cada dez transações bancárias já são realizadas pelo cliente pelo celular ou pelo computador.
Comprovando isso, o número de transações com movimentação financeira via mobile banking cresceu cerca de 80% em 2018 em relação a 2017. Foram 3 bilhões de transações bancárias com movimentação financeira a partir do mobile, aproximando significativamente o desempenho desse canal dos 3,9 bilhões de operações com movimentação financeira via internet banking.
Com o crescimento das operações online, o estudo constata que o surto pode levar a um aumento estrutural do uso de pagamentos móveis, cartões e online. Mas também estes exigem cuidado. Por exemplo, transações com cartão de débito e crédito geralmente exigem uma assinatura ou uma entrada de PIN em um dispositivo para transações maiores. Para evitar isso, recentemente autoridades, bancos e redes de cartões na Áustria, Alemanha, Hungria, Irlanda, Holanda, Estados Unidos, Reino Unido e outros países estabeleceram limites mais altos de transações para pagamentos sem contato.
No Brasil, o Banco Central anunciou recentemente o PIX. O PIX é um sistema de transferências de dinheiro e pagamentos instantâneos que, quando em funcionamento, permitirá transações 24 horas por dia, inclusive em fins de semana e feriados, fazendo com que elas sejam reconhecidas na hora em que forem feitas, talvez até de modo mais rápido do que o se pagamento tivesse sido feito por cartão de crédito.
Obviamente ele levará algum tempo para ser plenamente adotado, mas a tendência é de que, com o tempo, as modalidades tradicionais fiquem em segundo plano ou, eventualmente, até sejam extintas. Um bom exemplo disso é o CDBC (Central Bank Digital Currency), que é uma moeda soberana digital com o objetivo de trazer controle, transparência e auditoria ao processo de emissão e distribuição de recursos do Governo para os Estados e Prefeituras, até mesmo diretamente para a população quando necessário.
Os CBDCs representam uma evolução dos bancos centrais de todo o mundo no estudo, teste e potencial criação destas moedas digitais. Alguns deles, inclusive, vêm se reunindo em consórcios desde 2015 com o objetivo de entender melhor e testar a dinâmica e o comportamento destas plataformas. É o caso, por exemplo, dos projetos Jasper (Canadá), Ubin (Singapura) e Inthanon (Tailândia).
O movimento deve ser acompanhado de perto e com cuidado. Segundo as previsões do BIS, se o dinheiro deixar de ser aceito como meio de pagamento, isso pode abrir uma “divisão” entre pessoas com acesso a pagamentos digitais e aqueles sem, com impacto especialmente grave aos consumidores não bancarizados e idosos.
O Reino Unido, por exemplo, tem 1,3 milhão de consumidores não bancarizados. No Brasil este contingente é de mais de 45 milhões pessoas, o que mostra que em economias emergentes o acesso a essas alternativas está longe de ser universal, mostrando que o debate é importante.
*Paulo Marcelo é CEO da Solutis, tech partner especializada na aceleração de jornadas digitais