Por Flávia Lefèvre – Desde maio deste ano o Presidente Bolsonaro vem reagindo contra a atuação do Supremo Tribunal Federal, que vem fazendo frente ao uso abusivo das redes sociais pela base bolsonarista para promover desinformação e discursos de ódio contra as instituições. Aliás, já tratamos desse assunto por aqui.
O Presidente vem esbravejando também contra os mecanismos de moderação de conteúdos e remoção e suspensão de contas e perfis que disseminam falas a favor de medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra a Covid-19 e contra as vacinas.
Foi nesse contexto que circulou minuta de Decreto Presidencial, por meio do qual já se propunha uma série de medidas voltadas para regular a atuação das redes sociais e alterar o Marco Civil da Internet (MCI), como comentamos aqui no blog – Bolsonaro quer atropelar o Marco Civil da Internet.
Porém, a via do Decreto Presidencial para realizar seu intento foi criticada inclusive pela Advocacia Geral da União, o que levou os membros do governo a tentarem aperfeiçoar a iniciativa, tendo então editado a Medida Provisória 1.068, em 6 de setembro agora, “alterando a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais”.
Compreensível a reação de Bolsonaro, pois, como bem descreve Giuliano de Empoli, no seu importante livro Os Engenheiros do Caos:
“Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão. “Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug. “Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército”.
Considerando, então, a importância da desinformação para manter a mobilização da base de apoio político do Presidente às vésperas das eleições de 2022 e, além disso, o resultado das pesquisas para as próximas eleições para a Presidência da República, mostrando que Jair Bolsonaro corre o risco de sequer chegar ao segundo turno; isto sem contar com a perda de apoio de parcela significativa do empresariado e de banqueiros, é compreensível que tente utilizar das armas das quais dispõe enquanto está no poder para garantir que poderá continuar a atuar nas redes sociais.
Nesse cenário, é fácil concluir que a MP 1.068 tem como objetivo a manutenção de ferramentas de comunicação que tem sido fundamentais para sustentar a coesão de seus eleitores.
As ilegalidades de forma
Como já comentamos no post de junho, o art. 24 da Lei 12.965/2014, ao tratar da atuação do Poder Público, estabelece como diretrizes para a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no desenvolvimento da Internet no Brasil:
I – estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica; II – promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da internet no Brasil; Portanto, a regulação da Internet no Brasil deve ser resultado de processo multissetorial envolvendo o CGI.br e só por este fundamento a MP já pode ser considerada ilegal.
Além do desrespeito ao MCI, o mérito da MP 1.068 não se enquadra nos requisitos estabelecidos pelo art. 62, da Constituição Federal que autoriza o Presidente da República para editar medidas provisórias, especialmente por duas razões: não está configurada a urgência que justifique a medida e, ainda, porque a MP trata de direitos políticos, o que é expressamente vedado pelo § 1º, deste mesmo dispositivo.
Com base nesses e outros fundamentos o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) já ajuizaram Mandado de Segurança e Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, questionando o ato do Presidente e as chances dos pedidos cautelares serem admitidos são bem grandes. A Ordem dos Advogados do Brasil também anunciou que está estudando ações contra a MP.
Deputados e Senadores do PT, PSOL, PSB e PDT também já encaminharam ofício ao Presidente do Senado Rodrigo Pacheco para que a MP 1.068 seja devolvida para a Presidência, por não preencher os requisitos constitucionais.
Se ainda pudermos contar minimamente com as instituições, já que como muitos afirmam, ainda que eu discorde, elas estariam funcionando, a MP 1.068 não resistirá aos exames de legalidade pelas autoridades competente; e acho que sua vida será bem curta. Esperemos!
Quais são os reais objetivos da MP 1.068?
O objetivo anunciado pela Secretaria de Comunicação ao lançar a MP é o de assegurar a liberdade de expressão, pois de acordo com o Governo e com o próprio Presidente em discursos que tem feito para seus apoiadores, não podemos ficar reféns dos termos de uso definidos por empresas privadas que atuam como oligopólios globais na Internet. Ou seja, o objetivo anunciado de limitar a atuação dos provedores de aplicações da Internet é mesmo relevante.
É incontestável a necessidade de se regular as práticas comerciais de moderação de conteúdos aplicadas pelas empresas americanas que atuam como monopólios globais na Internet, como é o caso do Facebook e as empresas que integram seu grupo econômico que contam com mais de 2,7 bilhões em suas plataformas, assim como o Google e o Twitter.
Sabemos que o modelo de negócios dessas empresas está orientado por sistemas algorítmicos calibrados por interesses comerciais bem distantes do interesse público, revelando um controle inadmissível sobre o fluxo de informações no mundo, na medida em que definem os critérios de impulsionamento, recomendação ou ocultação de conteúdos, com o potencial de influenciar e modular comportamentos e formação de opinião sobre temas cruciais como saúde pública e política.
A Comunidade Europeia e os EUA estão envolvidos em processos que buscam regular a atuação dessas empresas. Aqui no Brasil o tema é objeto do PL 2630/2020, que passou pelo Senado e agora está em fase de debates na Câmara.
Entretanto, na realidade, a MP é uma reação tanto a ações que vem sendo adotadas pelas plataformas de remover conteúdos e suspender contas e perfis, quanto a ações que vêm sendo adotadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral, cujo resultado tem sido a prisão de figuras emblemáticas do bolsonarismo como o Deputado Roberto Jeferson, e a determinação de desmonetização de vídeos veiculados por canais bolsonaristas.
Qual o sistema de moderação estabelecido pela MP?
A MP introduz no MCI o art. 8º-A, que estabelece novos direitos e garantias para os usuários da Internet, sendo que muitos deles realmente são importantes, como se pode concluir do teor do dispositivo:
Art. 8º-A Aos usuários, nas relações com os provedores de redes sociais, são assegurados os seguintes direitos, sem prejuízo do disposto na Seção I deste Capítulo: I – acesso a informações claras, públicas e objetivas sobre quaisquer políticas, procedimentos, medidas e instrumentos utilizados para fins de eventual moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo gerado pelo usuário, incluídos os critérios e os procedimentos utilizados para a decisão humana ou automatizada, ressalvados os segredos comercial e industrial; II – contraditório, ampla defesa e recurso, a serem obrigatoriamente observados nas hipóteses de moderação de conteúdo, devendo o provedor de redes sociais oferecer, no mínimo, um canal eletrônico de comunicação dedicado ao exercício desses direitos; III – restituição do conteúdo disponibilizado pelo usuário, em particular de dados pessoais, textos, imagens, dentre outros, quando houver requerimento; IV – restabelecimento da conta, do perfil ou do conteúdo no mesmo estado em que se encontrava, na hipótese de moderação indevida pelo provedor de redes sociais; V – não exclusão, cancelamento ou suspensão, total ou parcial, de serviços e funcionalidades da conta ou do perfil, exceto por justa causa, observado o disposto no art. 8º-B; VI – não exclusão, suspensão ou bloqueio da divulgação de conteúdo gerado pelo usuário, exceto por justa causa, observado o disposto no art. 8º-C; e VII – acesso a resumo dos termos de uso da rede social, com destaque às regras de maior significância para o usuário. Parágrafo único. É vedada aos provedores de redes sociais a adoção de critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdo que impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa, observado o disposto nos art. 8º-B e art. 8º-C.” (NR)
Merecem destaque os incisos que garantem aos usuários a manutenção de seus conteúdos, bem como o que impede os provedores de adotarem critérios de moderação ou limitação do alcance da divulgação de conteúdos, que não estejam respaldados pelas hipóteses de JUSTA CAUSA estabelecidos pelos arts. 8º-B e 8º-C. Isto porque são eles que revelam as reais intenções do Presidente ao editar a MP.
Estes dois artigos tratam respectivamente das hipóteses de justa causa para a exclusão, o cancelamento ou a suspensão, total ou parcial, dos serviços e das funcionalidades da conta ou do perfil de usuário de redes sociais e para a exclusão, a suspensão ou o bloqueio da divulgação de conteúdo gerado por usuário.
Facebook, Google e Twitter reagiram a estas disposições publicando nota, pois entenderam que a MP representa uma intervenção inconstitucional na atividade econômica explorada pelas empresas, violando o fundamento da livre iniciativa expressa no art. 170, da Constituição Federal.
E de fato a MP impõe que os regramentos expressos nos arts. 8º A, B e C, sejam incluídos nos termos de uso das empresas, uma vez que enumera as hipóteses que se caracterizam como justa causa, deixando de incluir circunstâncias que hoje têm sido consideradas pelas plataformas, determinando um prazo de trinta dias para que as empresas adequem seus sistemas.
A Coalizão Direitos na Rede divulgou nota no dia 6 de setembro repudiando a MP e considerando que:
[O texto transforma, portanto, as redes sociais em espaços ainda mais homogêneos, inóspitos e tóxicos. Tais empresas não poderão mais realizar controle de spam ou de vendas de armas sem atender o requerimento de justa causa e motivação. Mais ainda: não poderão aplicar medidas em contas destinadas unicamente a promover crimes, assédio ou bullying, tudo em nome da “liberdade de expressão”. Assim, o governo prejudica a possibilidade de brasileiras e brasileiros se sentirem seguros e ouvidos para se expressar, criando uma internet sem diversidade de espaços. Uma internet em que poderão imperar os mais violentos e aqueles que lotam as timelines com spam. Isso viola frontalmente a liberdade de expressão e o acesso à informação de todas e todos. Ao estabelecer o que seria “justa causa” para a ação das redes sociais, a MP revela-se arbitrária, insuficiente e atécnica. A numerosa lista de exceções trabalha com temas vagos e deixa de fora situações cuja resposta célere das redes sociais tem se mostrado relevante, como é o caso de conteúdos que incentivam ódio ou práticas de desinformação. A minuta também limita as possibilidades de suspensão e exclusão de contas, tema fundamental que deve ser debatido e objeto de regras democráticas, sob risco de atacar a liberdade de expressão e silenciar vozes dissidentes. Na prática, a Medida Provisória editada altera o modelo de responsabilidade de intermediários estabelecido pelo Artigo 19 da lei, sem qualquer consulta a órgãos competentes, como o Comitê Gestor da Internet no Brasil, como determina o art. 24º, §1º do MCI, ou à sociedade. ]()
Além disso, a MP introduz no MCI o art. 28-A ao MCI estabelecendo um novo sistema de sanções a serem aplicadas por autoridade administrativa (§ 2º) que, pelo menos até agora, não se sabe qual será. Porém, muito provavelmente, se a iniciativa vingar, serão membros do governo que vão decidir sobre os conflitos instaurados por conta da aplicação da MP e as sanções.
As revogações
A MP revoga o § 2º, do art. 11 do MCI, mas transfere o texto para o parágrafo único do art. 1º, da Lei 12.965/2014, de modo que tudo o que está estabelecido no MCI passa a ser aplicável a toda e qualquer empresa, “mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil”.
Sendo assim, a obrigatoriedade de respeito à legislação brasileira relativa aos direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”, que antes estava prevista de forma expressa para as operações “de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional”, passa a ser aplicável para todo e qualquer tipo de operação realizada por empresa que integre grupo econômico com estabelecimento no Brasil, o que no meu modo de ver é positivo.
Foi revogado também o art. 12, do MCI, que estabelecia sanções quando houvesse infração aos arts. 10 e 11, que tratam respectivamente das obrigações relativas à guarda e disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de Internet e das operações de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de dados pessoais.
Ou seja, a MP termina por reduzir garantias de proteção de dados pessoais nas operações ocorridas na Internet, vulnerabilizando a segurança dos usuários, o que é mais um sinal de que as intenções do Presidente ao editar esta norma não são das melhores.
Sabemos que as práticas utilizadas pelas campanhas de desinformação fundamentais para a atividade política do Presidente e seus apoiadores dependem bastante do acesso a dados pessoais para realizar perfis de eleitores, para o direcionamento de mensagens com vistas a modular comportamentos e induzir votos.
O tiro pela culatra
Mas o mais curioso é que o tiro do Presidente contra os provedores de aplicações de Internet pode ter saído pela culatra. Isto porque muitas das hipóteses de justa causa são bastante subjetivas e implicarão em que as plataformas passem a realizar juízo de valor a respeito dos conteúdos postados.
Vejamos, por exemplo, uma das justas causas para remoção de conteúdos prevista na MP 1068: quando o conteúdo publicado estiver em desacordo com o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (inc. I, do § 1º, do art. 8º-C, da MP). Pergunto então: vídeos que estimulem prática do charlatanismo e não uso de vacina ameaçariam crianças e adolescentes no seu modo de ver?
Outro exemplo: prática, apoio, promoção ou incitação de crimes contra a vida, pedofilia, terrorismo, tráfico ou quaisquer outras infrações penais sujeitas à ação penal pública incondicionada (alínea “b”, do inc. II, do § 1º, do art. 8º-C, da MP). Pergunto: incitar a violência, com ameaças de ataques físicos se enquadraria no art. 286 do CP, cujo teor é “incitar, publicamente, a prática de crime” e se caracteriza como crime de ação penal pública incondicionada?
Outro: apoio, recrutamento, promoção ou ajuda a organizações criminosas ou terroristas ou a seus atos (alínea “c”, do inc. II, do § 1º, do art. 8º-C, da MP). Pergunto: posts e vídeos que monetizam com o objetivo de promover a milícia se enquadraria no tipo penal do art 288-A, do CP, cujo teor é “constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”?
Ou seja, se o objetivo do Presidente era reduzir o poder das redes sociais, na prática o efeito da MP pode gerar um efeito contrário, ainda que estabeleça o direito de o usuário requerer a restituição do conteúdo; porque, se a justa causa estiver configurada, a restituição do conteúdo não será obrigatória e a plataforma poderá resistir à reinclusão.
Portanto, esse tiro pode sair pela culatra e, pior, põe em situação de alta vulnerabilidade toda a sociedade brasileira e nossas garantias institucionais.
A MP instaura um ambiente de caos informacional, pois, além de deixar para fora das hipóteses de justa causa fatos de extrema importância, como bem advertiu a Safernet ( https://www.telesintese.com.br/publicada-medida-provisoria-que-interfere-no-funcionamento-de-redes-sociais/ ), colocará em situação de confronto e grande incerteza os usuários, as plataformas, a tal entidade da administração que interferirá nesta relação, induzindo uma enxurrada de ações judiciais, atulhando o Poder Judiciário.
A MP acolhe o lobby dos titulares de propriedade intelectual
Para piorar a situação, a MP acolhe a pretensão antiga das entidades de defesa da propriedade intelectual, que sempre quis estar contemplada no MCI, e altera também a Lei de Direitos Autorais.
A MP quanto a este tema, confere à plataformas ainda mais poder, na medida em que as coloca na condição de guardiãs dos direitos relacionados a patente, marca registrada, direito autoral ou outros direitos de propriedade intelectual (inc. V, do § 1º, do art. 8º-B, da MP), afetando de forma grave e indesejável a liberdade de expressão e criando condições para a censura, comprometendo uma das principais características e ganhos que a Internet trouxe para a humanidade, que é o compartilhamento de informação.
O melhor que pode acontecer, portanto, é que tanto Supremo quanto o Congresso Nacional impeçam mais esse arroubo autoritário e ensandecido do Presidente Bolsonaro, preservando o Marco Civil da Internet, uma das mais importantes conquistas legislativas recentes, junto com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, resultados de debates multissetoriais e democráticos, que merecem ser preservados.
A regulação da atividade de moderação de conteúdos pelos provedores de aplicações da Internet é uma necessidade premente, sem dúvida, mas deve ser construída com respeito às garantias constitucionais e com o que está previsto no art. 24, do Marco Civil da Internet.
*Flávia Lefèvre Guimarães é advogada especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais. É integrante da Coalizão Direitos na Rede, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, consultora associada do Instituto NUPEF – Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação e membro do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; foi representante das entidades de defesa do consumidor no Conselho Consultivo da ANATEL de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2009 e representante do 3º Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil de maio de 2014 a maio de 2020.