Por Flávia Lefèvre – No dia 13 de maio de 2021 o Ministério do Turismo, motivado pela reação do Presidente Jair Bolsonaro às práticas de remoção de conteúdos pelos principais provedores de aplicações na Internet, especialmente Facebook, Instagram, Youtube e Twitter, de postagens defendendo uso de medicação sem eficácia comprovada para a suposta cura da COVID-19, bem como outras mensagens de cunho desinformativo, enviou aos Ministérios da Justiça, da Ciência, Tecnologia e Inovações e das Comunicações, proposta de decreto que atropela o Marco Civil da Internet.
É claro que mais do que a preocupação com a defesa da cloroquina, o Presidente está preocupado em poder usar as redes durante o processo eleitoral de 2022 da mesma forma abusiva e ilegal como fez em 2018, atropelando a proteção de dados pessoais e a Lei Eleitoral e que foi determinante para sua eleição e de 54 deputados federais do Partido Social Liberal entre tantos outros de partidos de direita que o apoiaram.
Por isso, ignorando os limites de poder à que está submetido pela Constituição Federal, pretende, de forma autoritária e arbitrária, alterar a lei do Marco Civil da Internet por decreto, com o objetivo de atender seus interesses privados.
A proposta de Decreto, sem nenhuma discussão com a sociedade e sem o envolvimento do Coomitê Gestor da Internet no Brasil, inova quanto a direitos e garantias expressos na Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet, alterando o regime de responsabilidade dos provedores da Internet e estabelecendo a obrigatoriedade de que as remoções de conteúdo só possam se dar por prévia ordem judicial, o que é de uma irracionalidade absolutamente inadequada à dinâmica de uso dessas plataformas que veiculam milhões de postagens por minuto e que pode até comprometer o funcionamento do Poder Judiciário.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, atenta ao alto potencial de risco para a democracia e liberdade de expressão que a proposta revela, instaurou Audiência Pública para tratar da proposta de decreto que ocorreu no último dia 2 de junho de 2021. Participei do evento representando o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, destacando os vícios formais que levam à ilegalidade e inconstitucionalidade da iniciativa.
Participaram do evento presidido pelo Deputado Carlos Veras do Partido dos Trabalhadores, além de mim:
Márcio Nobre Migon – Coordenador do Comitê Gestor da Internet no Brasil Demi Getschko – Diretor Presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br e Conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil Jonas Valente – Laboratório de Políticas de Comunicação da UnB Raquel Saraiva – Coalizão Direitos na Rede Mariana Valente – InternetLab
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, Ministério das Comunicações, Secretaria de Cultura, Google/Youtube – Facebook, Twitter foram convidados, mas não confirmaram a participação.
A audiência pública pode ser assistida por esse link: https://youtu.be/O03Ok2EEqm0?t=1692
Segue o texto que elaborei para apoiar minha participação:
Quero agradecer em nome do INTERVOZES pelo convite e cumprimentar a Comissão de Direito Humanos e Minorias da Câmara Federal e os parlamentares na pessoa do Presidente Deputado Carlos Veras, pela importante iniciativa, que merece toda a atenção da sociedade pelo seu potencial de dano às instituições democráticas do país.
Vou me restringir a tratar de dois aspectos formais que na nossa opinião implicam na ilegalidade e inconstitucionalidade da proposta de Decreto originada no Ministério do Turismo e encaminhada aos Ministérios da Justiça, Ciência, Tecnologia e Inovações e Comunicações, em 13 de maio de 2021.
Obrigatoriedade de processos multissetoriais e da participação do CGI.br nos processos normativos e legislativos que tratem do desenvolvimento e uso da Internet no Brasil
A primeira delas diz respeito à opção que o Brasil fez pela governança multissetorial da Internet, que vem desde 1995, com a edição da Portaria conjunta 147 do MCOM e MCTI, quando foi criado o CGI e que se consolidou em 2003, com a edição do Decreto 4.829, que confirmou seu caráter multissetorial com a previsão de 21 representantes do governo, empresas, academia e terceiro setor e trouxe mais atribuições ao Comitê.
As contribuições do CGI desde então foram determinantes para o desenvolvimento da Internet no Brasil, mas principalmente para todo o processo de construção da Lei 12.965/2014, sendo que uma das contribuições mais importante foi o Decálogo de Princípios para a Governança da Internet, que claramente serviu de base para o Marco Civil da Internet, que tem sido reconhecido de modelo internacional tanto pelo processo democrático que levou à edição da lei, quanto pelo seu conteúdo.
O Brasil então, ao editar o Marco Civil da Internet em 2014, estabeleceu diretrizes claras para a atuação dos Poderes Públicos das 3 esferas federativas, sendo as primeiras delas (art. 24, incs. I e II) as mais relevantes para esse nosso debate:
A) A necessidade de se estabelecerem “mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica;
B) A promoção da racionalização da gestão, expansão e uso da internet, com participação do Comitê Gestor da internet no Brasil;
É inequívoco, portanto, que as propostas legislativas ou normativas que estejam relacionadas com o desenvolvimento, uso e gestão da Internet no Brasil devem necessariamente decorrer de um processo multissetorial, colaborativo, democrático e envolvendo o CGI.
E assim quis o legislador tendo em vista a gama imensa de interesses e direitos fundamentais afetados pelo uso da Internet tanto por agentes públicos, privados e pela sociedade civil como um todo, em razão do que decisões resultantes de consensos multessetoriais têm muito mais chances de causarem impactos sociais e econômicos positivos, pelo comprometimento das múltiplas partes.
No entanto, a proposta aqui em debate ignorou as disposições do MCI que estabelecem a governança multissetorial. Sabemos que o atual governo é pouco afeito a processos colaborativos. Prova disso foi que um dos primeiros decretos editados em 2019 foi o 9.759, extinguindo centenas de colegiados, sendo que parte desta norma já foi considerada inconstitucional pelo STF, numa ADI de iniciativa do Partido dos Trabalhadores.
Então, em resumo, entendemos que a proposta de decreto apresentada recentemente pelo Poder Executivo Federal traz conteúdo que obrigatoriamente implica na participação do CGI que é órgão de representação multissetorial.
O desrespeito ao princípio da reserva legal
Para além desta irregularidade, a proposta fere também o princípio da legalidade e o princípio da reserva legal, na medida em que, apesar de se propor a alterar o decreto que regulamenta o MCI, a proposta vai muito além disso; ela inova e altera o próprio MCI, o que significa uma distorção do processo legislativo democrático.
É certo que o Presidente da República, de acordo com o art. 84, inc. IV, da CF tem a atribuição de “expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis”.
E esses decretos normativos podem ser primários, independentes de uma lei, apenas quando tratem de matéria relativa à organização da administração pública.
Mas os decretos regulamentadores são atos administrativos de caráter normativo secundário, na medida em que derivam de preceitos pré-estabelecidos na lei.
É esta a estrutura legislativa que a CF encontrou para garantir o sistema democrático representativo, a atividade parlamentar e o Estado de Direito.
A importância da lei no Estado de Direito é óbvia, dado que ele se caracteriza justamente pela sujeição de tudo e todos à lei, conforme a garantia fundamental no art. 5º, inc. II, da CF de que ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Mas analisando o conteúdo da proposta de decreto, é fácil concluir, repita-se, inova e altera o MCI, introduzindo temas novos e, portanto, seu conteúdo deveria obrigatoriamente ser estabelecido por lei.
Importante verificar, então, em que pontos a proposta inova com relação ao MCI quando trata:
do cancelamento, exclusão e suspensão de contas; da exclusão, suspensão ou limitação de conteúdos; estabelece sistema de fiscalização e apuração de violações de direitos autorais; impõe sanções pelo descumprimento das novas obrigações. Tanto esses temas são inovações que existe o PL 2630/2020 que já passou pelo Senado e está agora em discussão na Câmara e trata desses aspectos.
Altera o MCI, quando trata do regime de responsabilidade dos provedores estabelecido pelo art. 19, da Lei.
A jurisprudência do STF quanto ao tema é no seguinte sentido em decisão relatada ainda pelo Ministro Francisco Resek e reiterada até hoje:
“… para expedir decretos regulamentares de uma lei, o Poder Executivo precisa observar quatro requisitos fundamentais: a) que esta lei exista e, além disso, esteja em vigor; b) que o decreto regulamentar se limite a assegurar a execução da lei da forma mais ‘fiel’ possível; c) que os destinatários do decreto sejam os agentes da administração pública direta e indireta; d) que o decreto não acrescente nenhuma obrigação ao particular, nem estabeleça nenhum novo direito”.
Qualquer ato que desborde desses limites tem sido entendido como abuso de poder, seja na modalidade de excesso ou na de desvio de poder. A mais autorizada doutrina de direito administrativo tem reconhecido que a figura do desvio de poder tem o objetivo de funcionar como limite à ação discricionária de agentes do Poder Executivo; um freio ao transbordamento da competência legal além das barreiras da lei, de modo a impedir que a prática do ato administrativo sirva a um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal.
No nosso caso, tudo indica que a proposta de decreto contém vícios de motivação e de finalidade, pois foi proposto como reação à atuação de empresas provedoras da Internet que, com base em seus termos de uso, têm removido conteúdos que divulgam informações reconhecidas como falsas e perigosas para a saúde pública no caso da COVID 19, promovidos seja por representantes do governo, seja por seus apoiadores.
Além disso, considerando a interferência que as plataformas operadas por essas empresas reconhecidamente tiveram para a eleição do atual governo, é razoável cogitarmos que a finalidade reprovável do decreto é garantir que no próximo processo eleitoral as campanhas de desinformação continuem a serem feitas em larga escala e sem controle, como ocorreu em 2018 e nos levou a este quadro de comprometimento grave das instituições democráticas e riscos a direitos fundamentais.
Recente decisão do TJSP a esse respeito considerou que a definição de termos de uso pelos provedores de Internet está respaldada pelo princípio da livre iniciativa expresso no art. 170, da CF, deixando claro, entretanto, que essas regras não podem contrariar o ordenamento jurídico pátrio e muito menos garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição Federal, (…) Ou seja, os mecanismos de remoção de conteúdos utilizados pelas plataformas são admissíveis, desde que não representem cerceamento à liberdade de expressão ou censura ou desrespeito a outras leis do país”.
Sendo assim, por esse aspecto o conteúdo do decreto é inconstitucional também por afrontar o fundamento da livre iniciativa, quando limita a atuação das plataformas no gerenciamento de conteúdos, afirmando que remoções só podem ocorrer por ordem judicial, cerceando a margem de liberdade desses agentes econômicos.
Para além das ilegalidades, essa solução é incompatível com a dinâmica e a rapidez com que os conteúdos são compartilhados na Internet e pode levar a um aumento vultoso das demandas ao Poder Judiciário.
Encerro aqui e me coloco à disposição.
*Flávia Lefèvre Guimarães é advogada especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais. É integrante da Coalizão Direitos na Rede, do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, consultora associada do Instituto NUPEF – Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação e membro do Conselho Consultivo do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé; foi representante das entidades de defesa do consumidor no Conselho Consultivo da ANATEL de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2009 e representante do 3º Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil de maio de 2014 a maio de 2020.