Por Flávia Lefèvre Guimarães – No momento em que o Congresso e a sociedade brasileira se mostram tão preocupados com os processos de desinformação por meio do uso abusivo e ilegal dos serviços prestados por empresas que atuam na Internet, é chocante que não haja uma pressão real e estridente para que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – Lei 13.709/2018, aprovada há dois anos e que deveria ter entrado em vigor ontem – dia 14 de agosto, passe a vigorar desde já.
No Ciclo de Debates Públicos: Lei de Combate às Fake News promovido pela Câmara Federal para debater os termos do PL 2630/2020 aprovado no Senado, do qual tive a honra de participar, cuja finalidade é estabelecer uma lei sobre Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet, com vistas a combater as “fake news”, dezenas de especialistas, parlamentares e acadêmicos deixaram inequívoco o fato de que o uso de dados pessoais para o direcionamento de conteúdos com discursos de ódio, desinformação, crimes e propaganda política ilegal, tem sido determinante para a disseminação ilícita e danosa de desinformação.
Fatos que hoje já são notórios como o escândalo da Cambridge Analytica envolvendo a eleição que levou Donald Trump ao poder e a votação do Brexit no Reino Unido e, agora, as campanhas de desinformação relacionadas à Covid-19, também deixam claro o caráter fundamental do uso indevido de dados pessoais para os exércitos virtuais que atuam para a desinformação.
Sendo assim e às vésperas das eleições para prefeitos e vereadores, que ocorrerá dentro de poucos meses e que implicará no uso intenso da Internet por força do isolamento decorrente da pandemia, a audência da LGPD é um prejuízo grave, pois acirra nossas vulnerabilidades como usuários da rede. Sabemos que são as plataformas que promovem impulsionamento e envio de mensagens com propaganda política pela Internet, como, infelizmente, está autorizado pela Lei Eleitoral, como não nos indignarmos com a apatia da sociedade frente à resistência do Governo em promover as ações necessárias para por em vigência e em prática a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais?
Lembro, inclusive, que o Governo editou a Medida Provisória 959 em abril deste ano, estabelecendo a “operacionalização do pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda e do benefício emergencial mensal de que trata a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, e prorroga a vacatio legis da Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, que estabelece a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD”.
Ou seja, o Governo aproveitou o pretexto da Covid-19 para entre outros bois da boiada, passar a prorrogação da entrada em vigor da LGPD. Esperamos que o Congresso não aprove esta medida!
Se de um lado causa indignação a inércia da sociedade e do parlamento que apoiou por unanimidade a LGPD, de outro não é difícil entender os motivos que levaram o atual Governo à Medida Provisória 959, com a previsão de suspensão da entrada em vigor da lei por ainda mais tempo, pois:
O que esperar de um Governo que, já com a LGPD promulgada, mesmo que ainda não em vigor, se apressou para editar o Decreto 10.046/2019, que pôs por terra uma série de garantias da lei? E, nesse sentido, deixo aqui o acesso a artigo que escrevi junto com a Joyce Souza, da UFBA, sobre os danos da incerteza quanto à entrada em vigor da LGPD num cenário de pandemia.
O que esperar do governo que se apressou para se apropriar da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), submetendo-a à estrutura institucional da Presidência da República – MP 870 de 1º de janeiro de 2019, convertida na Lei 13.844/2019? E que esta situação, com a aprovação do Congresso, perdurará por pelo menos dois anos?
O que esperar de um Governo neofascista que acaba de criar uma estrutura para promover mais vigilância dentro da ABIN – Decreto 10.445, de julho de 2020, num momento em que se constata que o Ministério da Justiça está envolvido na formulação de dossiês para identificar servidores públicos anti-fascistas?
O que esperar de um Governo que, ao invés de atuar no sentido de regulamentar a LGPD, que deveria já estar em vigor, sequer cria as condições para a implantação da ANPD – organismo central para dar concretude à lei?
O que esperar de um Governo que mantem no Palácio do Planalto um comitê de comunicação, conhecido como “gabinete do ódio”, como tem sido apurado no bojo do Inquérito 4781-DF do Supremo Tribunal Federal, comentado aqui no blog.
O que esperar de um Governo que sequer publica uma Portaria para nomear os representantes eleitos, já há 4 meses, da sociedade civil para o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), órgão estabelecido desde 1995 com representação multissetorial que desempenhou um papel preponderante no desenvolvimento da cultura de proteção de dados no Brasil e que está paralisado desde junho deste ano, justamente no momento em que o debate sobre o PL 2630 está em pauta e tem pertinência direta com as atribuições do CGI.br?
O que esperar de um Governo que se elegeu e pretende se reeleger tendo como fundamento os processos de desinformação na Internet, como está sendo apurado em diversos processos no Tribunal Superior Eleitoral?
Mas as perguntas fundamentais são as seguintes: por que a sociedade não reage e os parlamentares, que se dizem preocupados com a influência das campanhas de desinformação nas próximas eleições, também não se mexem?
É preciso reconhecer que, junto com o Marco Civil da Internet, a LGPD e a lei que vier como resultado dos debates em torno do PL 2630/2020, teremos um microssistema fundamental para regular a atuação dos provedores de serviços na Internet e enfrentar as condutas ilícitas na rede.
Por fim, quero lembrar aos parlamentares que a inércia pode neste caso, legitimamente, ser tomada como cumplicidade injustificada, que acirra nossa vulnerabilidade como cidadãos expostos aos sistemas algoritmicos regidos pelos interesses privados de agentes econômicos transnacionais – comerciais e políticos – e que enfraquece a democracia no Brasil.
*Flávia Lefèvre Guimarães é Advogada e Mestre em Processo Civil pela PUC/SP.