Por Martha Leal e Manoel Gustavo Neubarth Trindade* – O advento da internet produziu mudanças profundas em todos os setores de nossas vidas, alterando substancialmente a forma de comunicação por meio da possibilidade de maior e mais fácil acesso à informação. Apesar de ter chegado ao Brasil em meados de 1981, foi a partir de 1990 que os efeitos da internet começaram a se tornar mais relevantes, com o surgimento da World Wide Web (WWW), responsável pelo protocolo Hypertext Text Transfer Protocol (HTTP) e que possibilitou a transferência de páginas entre os navegadores.
O desenvolvimento e a transformação provocados pelo uso da internet, especialmente a aplicação desta por meio de interconexão com os objetos de uso cotidiano, a denominada “internet das coisas”, significou uma verdadeira quebra de paradigma na forma em que a sociedade se organiza, seja no âmbito pessoal, seja no cenário econômico.
As relações travadas no ambiente virtual passaram a ter uma dimensão sequer antes imaginada, sendo natural a evolução também nos negócios, de modo a se observar a necessidade de adequação e remodelação da regulação dessas relações pelo Direito às novas demandas e desafios. As interações passaram a ser travadas de forma menos burocrática, bastando ao usuário, quando na posição de consumidor, acessar diretamente os serviços e produtos de seu interesse, pesquisando preços e fazendo comparações, sem qualquer barreira geográfica, em verdadeiro movimento de desterritorialização.
Esta dinâmica é tão intensamente absorvida que a Organização das Nações Unidas (ONU) acredita que, seja qual for o crime cometido pela pessoa – mesmo que de violação de direitos autorais ou intelectuais –, todo ser humano tem o direito de continuar com acesso à informação e, consequentemente, à internet.
Segundo a ONU, violar este direito fere o Artigo 19, parágrafo 3º, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (goo.gl/F61aV), de 1966 e que dispõe que todo cidadão possui direito à liberdade de expressão e de acesso à informação por qualquer tipo de veículo. O parágrafo 3º leva em consideração que pessoas que tiverem transgredido algum tipo de lei envolvendo meios de comunicação, podem sofrer restrições específicas e não totais, e apenas se as transgressões puserem em risco os direitos e reputações de outros ou à segurança nacional.
No ambiente nacional, a PEC 47/2021 foi apresentada ao Senado, incluindo dispositivo no art. 5º da Constituição Federal, para fins de assegurar a todos o direito à inclusão digital, determinando que o poder público promova políticas que visem a ampliar o acesso à internet em todo território nacional. Ressalte-se, aliás, que o informalismo nessas relações, onde uma parte pode livremente acessar a outra, inaugurou um novo estilo de se relacionar e, consequentemente, de se estabelecer relações comerciais.
Nesse contexto, a Economia de Plataforma é resposta natural deste movimento, surgindo igualmente novos desafios, acarretados sobretudo pela possibilidade de concentração do poder informacional, que passa a ser detido por alguns poucos e gigantes atores. As chamadas “bigtechs”, em comparação com grande parte dos demais agentes de mercado e com os indivíduos que ocupam a posição de usuários finais, ilustram esta nova realidade. Justamente nesse sentido é que o agravamento do problema da assimetria informacional se torna consequência inevitável, na qual as relações de modo geral, e não diferentemente as relações negociais, se abastecem e se potencializam a partir dos dados pessoais, mas não de forma isonômica ou mesmo claramente perceptível, com o potencial, portanto, de causar desequilíbrios nos mais diversos segmentos e, dessa forma, causar distorções no poder de mercado e mesmo ensejar a sua utilização disfuncional.
Em outras palavras, no novo paradigma da Economia de Plataforma, o poder de mercado deixa de ser fundamentalmente exercido por aquele ou aqueles que possuem os meios de produção ou o capital, mas sim passa a ser detido (o poder de mercado) por quem controla os dados. Aliás, é possível constatar que o poder de mercado aí deriva de outra falha de mercado, isto é, da assimetria informacional, a qual se agrava no contexto da Economia de Plataforma. E é exatamente nesse ponto que a Lei Geral de Proteção de Dados (e as demais normas que visam proteger os dados e assegurar a autodeterminação informativa) se apresenta como uma salvaguarda a tais problemas e aos seus potenciais efeitos nocivos.
Nesta nova formatação das relações de mercado, impulsionada, cada vez mais, pela sofisticação tecnológica, as transações ocorrem em ambientes virtuais, como se está a observar, por exemplo, com a substituição progressiva das lojas físicas por lojas on-line, as quais, na maioria das vezes, encontram-se inseridas dentro de grandes marketplaces.
Inconteste que, com o advento da internet, a propagação da viabilidade de comunicação direta entre os usuários, a inovação tecnológica e o processamento em larga escala de dados criaram ambientes propícios para a estruturação da Economia de Plataforma. Portanto, dispositivos móveis conectados à internet e que armazenam enorme volume de dados representaram uma transformação disruptiva na configuração das relações de mercado, favorecendo, porque não dizer, pelo menos inicialmente, a livre iniciativa dos usuários em estabelecer contatos e entabular negociações diretamente por meio da navegação pela internet, facilitada, ainda mais, pela possibilidade de poder assim agir de qualquer lugar e em qualquer momento, inclusive entre e durante outras atividades, com a utilização de aparelhos móveis e ininterruptamente conectados.
Apenas a título ilustrativo acerca do impacto trazido pela Economia de Plataforma, cumpre observar o mercado de músicas online (ou streaming) e que foi completamente transformado por essa nova formulação. Atualmente, o próprio artista tem a opção de produzir e gravar a música de sua autoria, sem o intermédio de uma editora ou gravadora, disponibilizando a sua mídia em sites próprios ou distribuindo-as diretamente por meio de lojas virtuais.
As plataformas alteraram a forma de consumo da música, colocando o usuário/consumidor em contato direto com o produto a ser adquirido, no caso a música, ou por meio da figura da agregadora, responsável pela formatação e distribuição das músicas aos canais de venda, plataformas de download ou de streaming. Há uma inevitável quebra de padrões nesta nova estruturação dos mercados, onde é facilitado o acesso direto entre pessoas e grupos de pessoas, empresas e organizações.
A Economia de Plataforma compreendida como uma nova formatação das estruturas de mercado se desenvolve dentro das plataformas on-line, as quais oferecem uma gama de serviços disponíveis na internet, incluindo e-commerce, mídias sociais, mecanismos de busca, aplicativos, sistemas de pagamento, entre outros. Esta dinâmica facilita as interações entre dois ou mais usuários, que podem ser empresas ou indivíduos.
As plataformas digitais se caracterizam por efeitos de rede e pela variedade de dados que abastecem o ecossistema digital, sendo prova disso que nem todas as plataformas exigem contrapartida financeira direta, a exemplo das redes sociais, que visam a agregar usuários e atenção para que sejam direcionados ao mercado monetizado, por meio de publicidade digital dirigida.
Conforme estudo realizado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), apesar das plataformas digitais não serem as únicas espécies de empresas que coletam e geram dados, são as que melhor fazem uso deles para refinar e atrair usuários. Os dados representam um insumo essencial que cria um tipo de “economia de escala dinâmica”, na medida em que empresas com maior volume de dados pessoais performam de maneira mais eficiente, apresentando produtos direcionados a um público mais receptivo e interessado.
As informações sobre os comportamentos e as preferências dos indivíduos independem de pesquisas de opinião, pois os dispositivos digitais (IoT) produzem uma quantidade tão grande de dados que se torna possível antecipar escolhas das pessoas e exercer influência sobre elas.
Essas informações se consubstanciam, na maioria das vezes, em dados pessoais, os quais são coletados de diversas formas, desde informações de cadastro e registro fornecidos diretamente pelo indivíduo/titular, como nome, cadastro de pessoas físicas (CPFs), endereços, estado civil, faixa etária, sexo, dados financeiros, endereço, geolocalização, comportamentos nas redes sociais, entre inúmeros outros.
Importante registrar que grande parte destes dados pessoais são coletados de forma indireta, sem que sejam fornecidos diretamente pelo titular do dado pessoal, fazendo com que as plataformas digitais sejam abastecidas de forma inesgotável por inúmeras informações dos indivíduos, através da vigilância na sociedade em rede. E, sem dúvida, o alcance desta vigilância em massa da sociedade por meio da coleta indiscriminada de dados pessoais, produz sérios riscos, pois podem agravar uma falha no mercado, qual seja, a assimetria informacional (a qual mais adiante será abordada), inclusive de modo a fazer surgir ou agravar outras falhas, como o poder de mercado, no caso, derivado da assimetria informacional.
Os dados pessoais se transformaram no principal insumo da economia digital, uma vez que a disputa se dá pela atenção. Atrair a atenção das pessoas é condição decisiva para que façam as escolhas que as empresas detentoras destes dados querem que sejam feitas. Essa atração, segundo Adam Alter, apoia-se não só no esforço de conhecer o potencial comprador para oferecer-lhe o que virtualmente lhe interessa, mas também no empenho de prender sua atenção ao máximo e orquestrar seus impulsos. Desta feita, fica evidente que a eficiência da Economia de Plataforma, compreendendo-se esta como novas formas de se estruturarem relações de mercado, marcadas pela eliminação dos custos de transação, é impulsionada pelos dados pessoais, que abastecem e potencializam esse modelo.
Nesse sentido, a assimetria informacional pode ser definida como uma falha de mercado que ocorre quando uma das partes detém maior quantidade de informações sobre um produto ou um serviço ou até mesmo sobre as características e propriedades da outra parte em uma determinada relação negocial, colocando-as em posição de desigualdade e, assim, podendo ocasionar desequilíbrios entre os agentes econômicos e em suas competências negociais. Embora não se confunda, para fins de facilitar a compreensão, poder-se-ia cogitar que, na existência de assimetria informacional, não há propriamente isonomia.
Entretanto, importante reconhecer que os dados pessoais abastecem as plataformas digitais, sem os quais a Economia de Plataforma não possui substrato para o seu funcionamento e para que as interações entre as pessoas e as organizações ocorram, sendo que, também, o sucesso ou insucesso de uma negociação está substancialmente atrelado ao nível de informações havido por meio da obtenção dos dados pessoais, torna-se possível concluir, por conseguinte, que qualquer desigualdade ao acesso a esse ativo – dados pessoais – influenciará no nível de assimetria informacional.
Para fins exemplificativos e para melhor visualização prática da aplicação deste fenômeno de desigualdade de condições informacionais envolvendo o manejo de dados pessoais, cabe trazer o emblemático caso que envolveu o Facebook e a empresa americana Cambridge Analytica.
De forma resumida, a empresa contratada para a campanha política de Donald Trump, nas eleições de 2016, e pelo grupo que promovia o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, teve acesso a informações pessoais de mais de 50 milhões de usuários do Facebook. A empresa teria obtido os dados pessoais dos usuários participantes e de seus amigos do perfil, através de um aplicativo de teste psicológico disponibilizado na rede social do Facebook. Na prática, o usuário e titular de dados pessoais que ingressou no aplicativo participando do teste psicológico teve os seus dados e de seus seguidores manipulados pela empresa Cambridge Analytica sem que tivessem conhecimento desta ocorrência.
Mesmo antes de adentrarmos nos sérios riscos de violação a direitos de privacidade e proteção de dados, é fácil constatarmos que, na situação em questão, há uma evidente assimetria informacional decorrente do acervo de dados pessoais. As redes sociais mostram o comportamento social, os compartilhamentos, curtidas e históricos de busca do indivíduo para que o algoritmo possa recomendar conteúdos personalizados.
Portanto, a partir deste amplo conhecimento sobre os usuários, sobre os temas que captam a atenção e geram o engajamento almejado, enseja-se terreno fértil para que seja exercida manipulação, através de direcionamento de conteúdo ao perfil adequado, chamado “online profiling”. E, nesse contexto, estaríamos também diante do problema da assimetria informacional, em razão da desigualdade de condições de acesso e produção de informações.
A relação entre o indivíduo, na qualidade de titular dos dados pessoais, e o Estado e empresas, no que tange ao fluxo informacional, perpassa por uma análise de vulnerabilidade do titular, seja na condição de cidadão ou de consumidor. No contexto do tratamento de dados pessoais pelo setor público e ante a evidência de assimetria de poderes, requer-se regras protetivas que limitem a atuação estatal.
No panorama nacional, contamos com um relevante precedente no julgamento do Supremo Tribunal Federal – ADI 6.387 – Caso IBGE – o qual decidiu pela inconstitucionalidade da Medida Provisória 954 de 2020 e que previa o compartilhamento desproporcional de informações de empresas operadoras de telefonia com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Desta feita, a Lei Geral de Proteção de Dados, em nosso ambiente nacional, impõe limites ao uso indiscriminado dos dados pessoais pelos agentes de tratamento, sejam por pessoas de direito público ou de direito privado, alçando o indivíduo a protagonista do tratamento dos dados pessoais que lhe dizem respeito, isto é, garantindo autodeterminação informativa.
Sem pretender adentrar na análise do instrumento legal ora mencionado, importante mencionar que a lei condiciona a observância a princípios, tais como transparência, finalidade, adequação dos dados, segurança, entre outros, bem como a alocação de uma hipótese legal autorizadora para o processamento dos dados pessoais, sob pena de se configurar ilicitude. Portanto, é possível compreender que, por meio da aplicação dos instrumentos regulatórios em questão, os agentes de tratamento que infringirem tais normas, estão sujeitos a penalidades diversas, seja pelo dano reputacional, seja pelas próprias sanções pecuniárias.
No caso do escândalo envolvendo o Facebook e a empresa Cambridge Analytica, trazido como ilustração, é importante ressaltar que serviu como elemento impulsionador a aprovação do Regulamento Geral de Proteção de Dados na União Europeia, tendo diversos desdobramentos, com aplicações de multas milionárias pelo Federal Trade Commission (FTC), no Reino Unido e no Brasil, além da perda financeira de quase US$ 40 bilhões, à época, decorrente da queda em suas ações.
Justamente, no âmbito da Economia de Plataforma, o acesso aos dados pessoais por parte das plataformas, que, portanto, exercem o papel de controlador, implica em grande risco de agravamento da assimetria informacional e, a partir daí, de captura dos excedentes provenientes das trocas de uma parte em detrimento da outra e, inclusive, comprometimento de bem-estar. Mas, nesse contexto, o agravamento da Assimetria Informacional pode também ensejar poder de mercado e igualmente a sua utilização disfuncional, com captura de excedentes e comprometimento de bem-estar.
Dessa forma, a Lei Geral de Proteção de Dados se apresenta como instrumento de controle e coibição da desigualdade informacional. Reitera-se, como se buscou evidenciar, as normas de proteção de dados pessoais, entre elas a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), buscam, em realidade e essência, combater o problema da assimetria informacional, impedindo a utilização disfuncional dos dados pessoais, assim como garantir a autodeterminação informativa, objetivando ensejar o adequado funcionamento do mecanismo de mercado e impedir a apropriação/captura indevida de excedentes provenientes das transações econômicas de uma das partes em detrimento da outra e mesmo redução de excedentes de modo geral e, consequentemente, de bem-estar.
*Martha Leal é Data Protection Officer ECPB pela Maastricht University. Certificada como Data Protection Officer pela EXIN. Certificada como Data Protection Officer pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro – FGV. Mestranda na Unisinos – Mestrado Profissional em Direito. Presidente da Comissão de Comunicação Institucional do Instituto Nacional de Proteção de Dados – INPD. E-mail: marta@jpleal.com.br
*Manoel Gustavo Neubarth Trindade é Professor Permanente do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS. Coordenador e Professor do LLM em Direito dos Negócios e da Especialização em Direito Digital da UNISINOS. Foi Presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia – ABDE e do Instituto de Direito e Economia do Rio Grande do Sul – IDERS. Árbitro, Parecerista e Administrador Judicial. E-mail: manoelnt@unisinos.br