Por Jeovani Salomão* – Depois de mais de 6 meses sem escrever, deparei-me com um conjunto de situações que chamaram minha atenção e que, acredito eu, merecem um texto. Aqueles que acompanham meus artigos sabem da minha abordagem de utilizar analogias para destrinchar temas complexos. Quando a conexão entre um fato cotidiano e um assunto relevante acontece, o “papel” chama.
Desde o início da pandemia, por diversas razões, passei a fazer as compras de supermercado. Já fui questionado várias vezes sobre fazer compras pela Internet, mas mesmo considerando a logística maluca de colocar e tirar as compras da prateleira para o carrinho, para o caixa, para o carrinho de novo e para a casa – inclusive, em tom jocoso, já escrevi sobre este tema no artigo Cuidado para o Delivery não Matar seu Vizinho” – ainda prefiro a experiência presencial. Gosto de ficar de olho nas promoções, escolher itens que eu tenho vontade de comprar, ainda que não estejam na lista, ver gente (salvo quando o mercado está lotado).
Invariavelmente, em qualquer um dos estabelecimentos que frequento, assim que paro o carro, chega um flanelinha se oferecendo para olhar o veículo. A situação é constrangedora. Em primeiro lugar, pela histórica desigualdade social do país. Eu ali para fazer compras confrontado por alguém que está em situação de insegurança alimentar. Tenho o hábito de fazer doação. Na minha empresa, inclusive, temos um percentual do orçamento destinado para esta finalidade. Porém, a situação de rua é sempre mais complicada. O segundo constrangimento deriva da falta de opção. O que dizer para o cidadão? Uma negativa vai ou não gerar represália? Nunca se sabe. A maior parte das pessoas, mantenho sempre esta crença, é do bem, mas há também aqueles que não são. Então, acabo por balançar a cabeça e deixo para decidir depois o que fazer, assim como deve proceder a maioria das pessoas.
Depois do advento da LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados, da qual sou um crítico contumaz, estamos vivendo situações similares em nossas experiências, virtuais ou não. Provavelmente, você já deve ter passado por alguma delas também. Quer usar um site, uma rede social, um aplicativo, então concorde que você será submetido à política deles. Não concorda? Tudo bem, então não use. Como no caso do estacionamento, você fica em situação de constrangimento, aceita aquilo que não quer por não ter opção.
Enquanto usuário, elo mais fraco da relação, a lei não me protege, mas enquanto empresário, sinto-me ameaçado por ela. A LGPD entrou para o cenário das conversas corporativas, cada ator proferindo sua interpretação própria, em especial, aqueles que oferecem seus serviços. Conseguiram aterrorizar tanto as empresas que, independentemente do projeto, há sempre uma necessidade de se explorar o tema. Perceba, para quem vende, o objetivo é transformar a ameaça que a lei representa, especificamente para o empresário, em uma forma de proceder que traga segurança. Isto significa, por meio de artifícios e imposições, fragilizar a posição do usuário que deveria ser protegido pelo dispositivo legal.
O resultado final, como já devem ter percebido, é que a LGPD criou um mercado formidável, onde as empresas pagam especialistas, capazes de engendrar estratégias complexas, para que elas possam continuar fazendo uso dos dados dos usuários (no caso, eu e você!).
Recentemente, o tema denominado open banking mudou de nome para open finance. Trata-se de uma plataforma para compartilhamento de dados, inicialmente entre os bancos, para tornar as operações, em especial as que envolvem risco, mais seguras. Ou seja, um banco pode utilizar informações de outro banco para analisar, por exemplo, o crédito a ser concedido a um determinado indivíduo. O termo passou a se chamar finance, pois os dados são úteis em qualquer instituição financeira, não apenas em bancos. E como fica a LGPD neste caso? Ela “protege” os seus dados, portanto, a consulta entre organizações depende de uma autorização expressa da sua parte.
Sendo assim, os bancos e as entidades financeiras, gastaram milhões de reais com advogados, especialistas e sistemas, de forma a cumprir rigorosamente a lei. Ainda vão gastar mais e mais com a evolução das interpretações, fiscalizações e sanções que estão por vir. Para nós clientes, no entanto, nada mudou, uma vez que, se decidirmos não compartilhar dados, não teremos o empréstimo, pois o avaliador vai justificar ausência de informações para reduzir os riscos.
A propósito, garanto, existem inúmeras pessoas precisando de dinheiro, ou seja, o sistema financeiro é muito mais forte do que sua individualidade e pode escolher para quem vai emprestar. Terão preferência aqueles sobre os quais eles possuem mais informações, ou seja, os que autorizaram o compartilhamento dos dados pessoais.
A LGPD nasceu sob um pretexto correto, a necessidade de proteger os dados individuais. A crescente exposição gerada pela Internet precisa mesmo ser contida para preservar o cidadão. Infelizmente, os dispositivos incorporados na lei e sua implementação, até agora, são um verdadeiro fiasco, exceto para aqueles que estão vendendo seus serviços. O indivíduo continua desprotegido, e não tenha esperança de que a legislação atual conseguirá mudar o constrangimento, tanto quanto as leis vigentes não são aptas para resolver a abordagem dos flanelinhas no estacionamento.
*Jeovani Salomão é presidente da Memora Processos Inovadores, membro do conselho na Oraex Cloud Consulting e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.