Por Marília Sturm* – Sim, você leu certo: neste artigo falaremos sobre a ferramenta que mais chacoalhou o mundo da tecnologia, finanças, educação e comunicação social nos últimos meses. No entanto, pelo título, você teve um spoiler da conversa: diferentemente de outras publicações que iluminam as potencialidades e os riscos dessa e outras plataformas de Inteligência Artificial (AI) generativa para governos, empresas e cidadãos de uma maneira geral, o texto a seguir conta como o advento de inovações do gênero não tornaram obsoleto o ser humano, ao contrário, o farão conectar-se cada vez mais com o que temos de único e irreproduzível: nossa intuição, senso crítico e criatividade, logo, nossa humanidade.
Por certo, não faltarão amantes da ficção científica nem de romances futuristas que dirão, sim, máquinas sentem, criam, e no mais das vezes, têm respostas mais geniais do que os próprios gênios — a exemplo da partida histórica entre o grande mestre de xadrez, Garry Kasparov, e a inteligência artificial criada pela IBM, a Deeper Blue. No embate em questão, a máquina superou a celebridade enxadrista graças ao empenho de desenvolvedores e técnicos de software em criar “brechas” na racionalidade total do dispositivo — que possuía centenas de milhões de jogadas e estratégias do jogo em seu HD — para que ela pensasse como uma pessoa, ou seja, que se entendesse o raciocínio, os estratagemas e, sobretudo, a malícia do jogador azerbaijano e assim vencê-lo no tabuleiro.
A partida pode ter sido vencida pelo CPU, mas a vitória foi antes de tudo da própria humanidade. Em outras palavras, foi preciso que um computador enorme relegasse montanhas de dados para derrotar o seu oponente em um jogo aberto. Mas se um aparelho de última geração teve de abrir mão para alcançar a vitória sobre seu oponente, por que ainda continuamos acreditando que devemos nos tornar mais próximos das máquinas? O impacto da chegada do Chat GPT pode ser uma oportunidade para repensar o papel dos seres humanos no mundo do trabalho, em suas tarefas domésticas e dentro da sociedade de maneira geral.
Competências sensíveis, lógicas e intuitivas: vocações transformadoras
Autoridades do mundo da tecnologia e especialistas econômicos acreditam que o advento de ferramentas de AI generativa, tais como o Chat GPT, representa a primeira etapa de uma nova transformação na maneira de consumir, trabalhar e usar tecnologia. Com efeito, segundo um levantamento da Goldmann Sachs, o desenvolvimento de softwares e serviços semelhantes pode representar um acréscimo de 15% de produtividade em empresas e setores públicos e ganho real de 7% na geração de riquezas para os próximos dez anos, cerca de U$ 7 trilhões ao redor do globo. Por outro lado, segundo a consultoria, esses recursos poderiam cortar mais de 300 milhões de colaboradores devido à informatização de suas atribuições.
As previsões seguem o prognóstico de outras instituições de prestígio como o Fórum Econômico Mundial, a Universidade de Oxford e o National Bureau of Economic Research, que preveem uma automação cada vez mais frequente em nossas atividades do dia a dia. Tanto é assim que, de acordo um levantamento da revista Plos One, em cinco anos gastaremos cerca de 30% menos tempo para fazer compras no supermercado e marcar consultas e, dentro de dez anos, fazer faxina, lavar louça e ensinar crianças tomará apenas 60% do esforço de hoje. Mas com tantas transformações na modernização, automação e configuração do papel das máquinas no mundo, o que sobra para nós, meros mortais?
Certamente, a promoção dessas inovações poderá, sim, ter um ganho substancial de qualidade de vida, produtividade no trabalho e, consequentemente, na criação de mais tempo hábil para atividades lúdicas e conexões verdadeiras entre amigos e parentes, colaboradores. Nessa linha, é cada vez mais urgente diferenciar a vida do trabalho da vida no trabalho, seja por meio de soluções e ferramentas inteligentes que potencializam essa diferenciação nesse ambiente, seja mediante a adoção de uma nova mentalidade para os processos intimamente ligados a dados, preferencialmente automatizados, e aqueles que necessitam de uma abordagem humana.
Assim, o desafio é criar uma cultura corporativa em que as habilidades inter-relacionais, ditas muitas vezes como soft skills, tenham o mesmo peso que as métricas e os resultados perseguidos por gestores e lideranças. Afinal, temos, de um lado, o crescimento no número de leads e a escalada da taxa do ROI (Return of Investiment) com importância significativa para a vitalidade de negócios, por outro, será que nos falta a abertura genuína de um espaço para pensarmos em métricas mais assertivas sobre o bem-estar de equipes, colaboradores e fornecedores?
A pandemia e o fortalecimento do home office como regime de trabalho foram exemplares para suscitar perguntas sobre o papel das relações humanas em nosso cotidiano. Quantas vezes um líder ficou sem norte para motivar colaboradores e orientar equipes? Da mesma maneira que gastamos horas com certificações de ITIL, Machine Learning, CISSP e Inteligência Artificial, por que não promover oficinas, encontros e momentos descontraídos em que times possam trabalhar sua comunicação, estender laços e se conectar de maneira singular? De acordo com um artigo da McKinsey, companhias que investem em competências interpessoais não apenas são mais felizes e produtivas no fluxo cotidiano como também são mais eficientes, resilientes e flexíveis na superação de crises e evolução do sistema corporativo.
Tecnologia: capacitar talentos e motivar pessoas
Para além do desenvolvimento de competências nas áreas de raciocínio analítico e resolução de problemas, criatividade e originalidade nas entregas, o uso de tecnologias generativas, preditivas e analíticas também pode ser fundamental para um campo pouco explorado no interior de empresas: a promoção do autoconhecimento e outras habilidades de liderança. Hoje em dia, muito se diz que um colaborador ideal é aquele que alinha competências técnicas e organização ímpar com astúcias pessoais como agilidade e inteligência emocional, tolerância e paciência; em contraste, suscito: quantas empresas você conhece que tenham programas ou, ao menos, liberam seus profissionais para a capacitação interpessoal fora do escritório ou dentro do “horário comercial”?
Pensadores contemporâneos como José Van Dijck, Pierre Lévy e Jean Baudrillard acreditam que os avanços de tecnologias em domínios puramente operacionais — realizar cálculos, construir gráficos e, agora, produzir textos de maneira quase instantânea, por exemplo — representam uma oportunidade para que a humanidade direcione suas energias para campos distantes da lógica puramente numérica, ou seja, a comunicação, a criatividade e, sobretudo, a empatia. Na avaliação de Baudrillard em seu livro A Troca Impossível, quando pensamos como máquinas ou estabelecemos metas algorítmicas, perdemos aquilo que nos singulariza na natureza: a engenhosidade de transformar espaços e tocar vidas. Computadores inteligentes e softwares de última geração podem ter nos apontando caminhos mais simples para construirmos um mundo melhor, entretanto, somos nós os responsáveis por qualquer decisão, seja ela positiva ou negativa.
Dessa forma, se hoje privilegiamos um raciocínio de “robô” dentro de um corpo humano é porque não temos conhecimento dos benefícios que uma abordagem humanística pode trazer para nossos ecossistemas. Iniciativas simples e programas direcionados em empresas, escolas e centros públicos podem reafirmar competências inter-relacionais em profissionais e estudantes de forma lúdica e interativa, muitas vezes, utilizando ferramentas como o próprio Chat GPT para reafirmar nossos traços mais característicos. Afinal, para além de mudanças econômicas e políticas, o grande traço da tecnologia é contribuir com o meio social em que ele está inserido, beneficiando assim uma inteligência coletiva em que todos os participantes possam se sentir realizados com o uso, troca e desenvolvimento de sabedoria, inovações e opiniões mais diversas.
*Marília Sturm é líder de vendas da Red Hat.