
A contabilidade societária — tradicionalmente considerada o alicerce da governança corporativa e da transparência dos mercados — vive um momento de inflexão. Em um ambiente econômico dominado por ativos intangíveis e pela velocidade dos fluxos de dados impulsionados pela Inteligência Artificial (IA), cresce o questionamento sobre a capacidade das demonstrações financeiras (DFs) de refletirem o valor real das empresas.
Mesmo sustentada pela Lei das S.A. (6.404/76) e pelos pronunciamentos do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), a disciplina enfrenta críticas de investidores, reguladores e consultores que veem nos balanços patrimoniais um retrato cada vez menos fiel da nova economia. Surge então a pergunta que permeou o mercado ao longo de 2024 e 2025: os balanços continuam relevantes? Quem ainda os lê como base de decisão?
Foi nesse contexto que a Capital Aberto realizou, nos dias 10 e 11 de novembro, um ciclo de debates reunindo algumas das vozes mais experientes da regulação e da prática contábil no Brasil. O evento, que ocorreu das 8h30 às 11h, destacou a urgência de uma atualização profunda na forma como a contabilidade captura, mensura e comunica valor. O curso está disponível em https://capitalaberto.com.br/encontros/contabilidade-societaria/
A diretora-executiva da Capital Aberto, Maika Ishigaki, abriu as discussões destacando o caráter decisivo do momento: “A contabilidade não pode mais ser vista como mera exigência burocrática, mas sim como um elemento essencial para o crescimento e a credibilidade empresarial”.
Para ela, a combinação entre a autoridade regulatória do professor Eliseu Martins e a visão aplicada do consultor Eric Martins ofereceu ao encontro a densidade técnica necessária para enfrentar os dilemas que desafiam o setor.
Do núcleo regulatório ao chão das empresas: a dupla que guiou o debate
Poucos nomes têm o peso institucional de Eliseu Martins. Ex-diretor do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) — em dois períodos distintos — Martins é uma das referências que moldaram a fiscalização financeira no país. Professor Emérito da FEA-USP, ele trouxe ao evento a perspectiva de quem acompanhou, de dentro do regulador, o surgimento dos principais dilemas contábeis: custo histórico versus valor justo, confiabilidade versus utilidade e a crescente pressão pela mensuração adequada de intangíveis.
Ao seu lado, Eric Martins — doutor em Contabilidade, parecerista, consultor e referência em avaliação de empresas — trouxe a visão prática do mercado. Com atuação em conselhos fiscais e comitês de auditoria de companhias abertas, ele conectou a teoria contábil aos desafios reais enfrentados por controllers, auditores e investidores. Segundo Martins: “A contabilidade societária não tem acompanhado as mudanças nos negócios das últimas décadas. Nesse encontro, veremos como e quando isso é verdade”.
Um sistema contábil construído para um mundo que já não existe
O avanço da economia digital e dos modelos de negócios baseados em dados expôs limites estruturais dos padrões contábeis tradicionais. Startups, plataformas digitais, empresas de software e companhias de tecnologia têm grande parte de seu valor concentrado em ativos que o balanço não mensura — ou mensura mal.
Nesse ponto, a influência da IA e do big data sobre a análise de demonstrações financeiras foi tema central. Os especialistas destacaram como algoritmos hoje capturam, cruzam e analisam milhares de dados simultaneamente, muitas vezes com maior precisão e velocidade do que relatórios auditados oferecem.
Mas o problema vai além da técnica. A infraestrutura também é apontada como obstáculo. Um dos pontos mais sensíveis discutidos foi o “acesso à informação no Brasil sofrível”, aliado à ausência de XBRL, formato que facilitaria o intercâmbio de dados contábeis em toda a cadeia de mercado — de analistas a reguladores.
IVA e a revolução tributária: contadores no centro da mudança
Embora o foco do evento tenha sido a reinvenção da contabilidade societária, a discussão alcançou também a transição fiscal em curso no país. A implementação do IVA, que substituirá diversos tributos indiretos, exige uma completa reestruturação da escrituração e da apuração tributária. As empresas deverão revisar sistemas, controles, estruturas de crédito e modelos de reporte.
Nesse cenário, a contabilidade deixa de ser mero registro para se tornar peça estratégica:
- garante conformidade fiscal;
- sustenta a governança;
- melhora a liquidez;
- orienta a tomada de decisão;
- e reduz riscos regulatórios.
Os especialistas foram unânimes: empresas com maior profundidade técnica na contabilidade terão transições mais seguras e competitivas.
O ciclo de debates promovido pela Capital Aberto ocorreu em um momento decisivo para a disciplina contábil no Brasil e no mundo. Entre a pressão da economia digital, as reformas tributárias e o avanço da inteligência artificial, a contabilidade societária se vê obrigada a repensar seus fundamentos.
E se o balanço patrimonial já não representa o valor das empresas, a questão que emergiu durante o evento segue ressoando no mercado: qual será a nova linguagem universal da confiança no capitalismo digital?
O encontro deixou claro que essa resposta dependerá não apenas de reguladores e especialistas, mas também da capacidade das empresas de compreender e dominar a revolução tecnológica que redefine, em tempo real, o próprio significado de informação financeira.







