Por Jeovani Salomão* – O ano era 1985, saíamos de um jogo de handebol, com o objetivo de pegar um ônibus para voltar para casa. Estávamos distraídos, conversando sobre o jogo, fazendo aquelas brincadeiras características da idade, quando escutamos um carro frear abruptamente. O grupo havia atravessado a rua sem perceber e, por pouco, não fomos atropelados. Após o breve susto, voltamos ao nosso curso normal, rindo da trapalhada. Eu comentei que episódios como aquele seriam parte do repertório de histórias para contar para filhos e netos. A verdade, é que a singela passagem, até agora, nunca havia sido compartilhada como meus filhos. A vida proporcionou outras aventuras muito mais interessantes para contar para eles e, para os netos, sem dúvida, vamos precisar explicar 2020!
Antes de qualquer comentário, faço sempre questão de apresentar meus sentimentos e minha solidariedade para quem perdeu familiares, amigos, empregos e empresas. Para muitos, foi um ano a ser esquecido. De alguma forma, para todos, foi marcante.
O mundo demonstrou ser incapaz de trabalhar com a ciência de forma interdisciplinar. A COVID deveria ter sido enfrentada com a sinergia de várias matérias, mas o que vimos foram economistas falando de medicina, biólogos falando de economia, matemáticos e estatísticos comemorando porque, até que enfim, a população compreendeu o que é uma curva de distribuição normal. Institutos mundiais, com ênfase para a Organização Mundial da Saúde, fizeram recomendações contraditórias, fora de tempo, politizadas e repletas de previsões equivocadas. Países esconderam dados sobre a doença, inclusive a própria existência do vírus, com destaque negativo para a China. Políticos utilizaram-se dos efeitos da pandemia para ganhar projeção, brigar pelo poder, encontrar caminhos de desacreditar prematuramente futuros adversários. Oportunistas de plantão, mesmo em um caso tão grave, usaram a máquina pública para gerar fortunas pessoais, adquirindo o que não era necessário ou comprando de forma superfaturada. Houve baixa colaboração entre as nações, entre as empresas da indústria farmacêutica e entre as instituições.
Por sua vez, uma parte da população desrespeitou as recomendações, outros se aproveitaram da situação para ficar em casa sem trabalhar, mas recebendo seus salários, como ocorreu com vários funcionários do governo. Claro que aqui cabe uma ressalva, tenho inúmeros amigos, colegas e conhecidos que são servidores públicos exemplares. Durante a pandemia trabalharam mais do que o normal, dedicaram-se com afinco para atender o público e manter o governo em pleno funcionamento, em especial, para os mais necessitados. Mesmo esses, a quem admiro, admitem que possuem colegas que se esconderam durante a pandemia. Uma vergonha.
Se o vírus fosse mais letal e tivéssemos, enquanto humanidade, nos comportado como fizemos, as perdas teriam sido terríveis.
É inegável, por outro lado, que várias oportunidades surgiram, perspectivas impensadas anteriormente vieram à tona, novas dinâmicas se consolidaram, pessoas e projetos extraordinários levaram assistência para milhões.
A pandemia foi, sem dúvida, o maior impulso para a digitalização de serviços nos últimos anos. Tanto as empresas quantos as organizações públicas aumentaram suas demandas de tecnologia da informação e conseguiram, de forma muito rápida, migrar do balcão físico para a Internet. A geografia das relações de trabalho mudou acentuadamente. Os limites para a contratação de profissionais em outras localidades se ampliaram. Não é raro encontrar pessoas que foram recrutadas e estão com seus novos empregos sem ter, sequer, saído fisicamente de casa. Novos negócios, novos modelos e novas dinâmicas empresariais surgiram, enquanto alguns negócios tradicionais sofreram quedas significativas.
Sob o aspecto familiar, o ano foi sem precedentes. Estudo, lazer, afazeres domésticos e trabalho ocorrendo simultaneamente, em um mesmo ambiente físico. Crianças e bichos de estimação estiveram presentes em muitas reuniões sérias, interrompendo, quebrando o clima e, às vezes, ajudando ao servir de válvula de escape para momentos tensos.
Os pais, por sua vez, acompanharam mais proximamente a rotina dos filhos e precisaram compreender melhor os dilemas da aprendizagem à distância. Até onde vai a saudável colaboração entre os colegas e onde começam a “cola”; quanto se assiste realmente da aula e quanto da atenção está compartilhada com as séries ou jogos; quanto conteúdo está sendo absorvido sobre o assunto e até onde o ano está sendo proveitoso para o futuro, são exemplos dos questionamentos cotidianos.
Muitas famílias abdicaram de ajuda doméstica e tiveram que dividir as tarefas da manutenção da casa. Pais e filhos revezando-se para fazer a comida e lavar os banheiros. Momentos, muitas vezes, inéditos. Uma nova realidade.
O ano de 2020 foi marcado, de forma inegável, por tristezas e por perdas, mas, principalmente, por mudanças de paradigma. A reflexão sobre o ocorrido e seus desdobramentos merece mais atenção que os anos anteriores. O começo do “novo normal” já está acontecendo, novas oportunidades estão surgindo a cada dia, o perfil da economia já está modificado, cada vez mais virtual.
Espero que o futuro incorpore as novas e muito melhores dinâmicas familiares, que a digitalização leve mais igualdade de oportunidades para os menos favorecidos, que o compromisso individual de cada um para com a humanidade seja enfatizado, que a solidariedade prevaleça sobre a ganância pessoal. Desejo que o mundo perceba que agiu mal, colaborou pouco, deixou com que a indústria farmacêutica, instituições e líderes mundiais priorizassem interesses próprios em detrimento do coletivo. Se assim for, 2020 será visto no futuro como um ponto de ruptura para uma sociedade melhor, então, que assim seja!
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.