Por Jeovani Salomão* – O título se refere a uma série brasileira disponível na Netflix. Trata de um futuro distópico no qual parte da população é selecionada para viver em uma localidade chamada “Maralto”, onde há oportunidades plenas e abundância, enquanto os outros 97% vivem em um ambiente de restrição e miséria. Como estou apenas no segundo capítulo, dificilmente darei algum spoiler que seja significativo, ainda que involuntariamente, motivo pelo qual pode ler o texto sem qualquer prejuízo, mesmo que tenha a intenção de assistir ao seriado.
Até o momento gostei do que vi, uma temática instigante, bons cenários, uso de tecnologia compatível com o futuro representado, boas atuações e uma trama envolvente. Importante avisar, trata-se de uma opinião de leigo, afinal não sou crítico de cinema, nem nada do gênero. Vale também ressaltar que apoiar produções nacionais de qualidade traz riqueza para o país, motivo pelo qual recomendo que a obra entre na sua lista .
Segundo organismos internacionais, o mundo tem hoje mais de 11% da população abaixo da linha da pobreza extrema (menos de 1,90 dólares por dia). De acordo com a ONU, em 2021, o total de pobres está em torno de 1,3 bilhão de pessoas, ou seja, 16% da população. Por outro lado, o número de milionários (em dólar) representa pouco mais de 1% da totalidade, segundo o Relatório Global de Riqueza do Credit Suisse de 22 de junho de 2021. O restante da população se divide entre classe baixa e média.
Mesmo sendo inaceitável tanta pobreza, privações e fome, nosso cenário atual ainda é bem melhor do que o retratado em 3%. Tema central para o debate é se vamos migrar para uma maior concentração de riquezas e a ampliação de desigualdades ou se conseguiremos ter um mundo acima da linha da pobreza e mais igualitário. Particularmente, é relevante discutir quais os impactos da invasão tecnológica que estamos vivendo nesta construção de futuros possíveis.
O pensamento de escassez, em minha opinião o principal responsável pelas mazelas mundiais, está profundamente relacionado com bens materiais, com o paradigma do concreto, do físico. Um bolo dividido para 5 pessoas vai proporcionar um pedaço maior para cada um do que o mesmo bolo dividido para 10 pessoas. Se fossem 100, possivelmente, apenas aquelas no começo da fila vão conseguir um pedaço, dado que a divisão equânime não proveria o suficiente para saciar as necessidades de um indivíduo. Neste cenário, há disputas para habitar os lugares mais privilegiados.
Há muito espaço no mundo. Segundo a Economist Intelligence Unit (EIU), Auckland, na Nova Zelândia, é a melhor cidade para se viver na face da terra. Se considerarmos a densidade demográfica da cidade, poderíamos construir uma imensa metrópole no Brasil que comportaria todos os habitantes do planeta e ainda sobrariam mais de 2 milhões de quilômetros quadrados. Em outra comparação, se tomássemos como padrão a densidade demográfica de Macau, que lidera este ranking, a integralidade das pessoas poderia morar em uma megalópole que ocuparia o tamanho da Alemanha.
Ainda assim, nossa percepção esta limitada e completamente influenciada por aquilo que está ao nosso redor. Começando pelo instinto de sobrevivência e percorrendo sentimentos que chegam até a mais completa avareza, a humanidade sempre foi tentada a possuir e acumular bens, os quais, por sua natureza essencial, são finitos. Ao dividir algo finito, obteremos uma quantidade cada vez menor ao aumentarmos o número de pessoas participantes do processo. Então, como na situação do bolo, os indivíduos, em geral, brigam para estar no começo da fila e pegar um pedaço que seja bom para eles, em detrimento dos meninos que passam fome na África.
Temos uma oportunidade enorme de mudar este cenário, uma vez que a produção de riqueza começa a se associar mais fortemente com intangíveis. As empresas mais valiosas do mundo não são mais as de petróleo e sim as de tecnologia da informação. A geração de valor está cada vez mais ligada com as ideias do que com bens materiais.
Neste contexto, quando mais gente produzindo e consumindo histórias, narrativas, plataformas, jogos, cenários e interfaces tanto melhor. A diversidade de experiências é fundamental para criar um futuro no qual as pessoas estarão cada vez mais conectadas, tendo em vista que o consumo de ideias irá superar o de bens materiais.
Em resumo, o elemento central que provoca a escassez pode desaparecer. É claro que continuaremos sempre a depender da produção de energia e de alimentos, mas os avanços tecnológicos estão a nosso favor. Por exemplo, desde a década de 80 até hoje, a área plantada de soja aumentou 220,87% em nosso país, enquanto a produção cresceu 501,6% segundo a CONAB, Companhia Nacional de Abastecimento. Ou seja, a ampliação da produção por hectare cresce mais do que o espaço utilizado, representando o aumento da eficiência, decorrente do uso de tecnologias diversas. O mesmo vale para a energia, principalmente com o avanço das fontes recicláveis. Segundo a IRENA, sigla em inglês da Agência Internacional de Energia Renovável, a capacidade instalada de energia solar e eólica, quando somadas, superou, em 2019, a das hidrelétricas.
Se conseguirmos trocar a mentalidade de escassez pela de abundância, e temos tudo para que isso ocorra com o avanço da tecnologia, haverá a possibilidade de, ao invés de viver uma sociedade distópica, com apenas 3% da população usufruindo da riqueza, vivermos em uma sociedade com 100% de pessoas em condições de dignidade.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA, Membro do conselho na Oraex Cloud Consulting, ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional e escritor do Livro “O Futuro é analógico”.