Por Jeovani Salomão* – O ídolo do futebol Diego Maradona faleceu recentemente. O que fez dentro de campo, o colocou como um dos maiores fenômenos esportivos do planeta. Para muitos, em especial para os argentinos, foi o melhor jogador de todos os tempos. Tenho amigos que fizeram música e declararam seu amor nas redes sociais. Uma verdadeira comoção. Para nós, brasileiros, e sob qualquer critério objetivo, o melhor sempre foi e sempre será o Pelé. Dieguito foi craque, deu show, promoveu momentos épicos, mas sua trajetória como pessoa não foi louvável. Acredito que os ídolos possuem responsabilidades maiores que os demais em ser exemplo para a sociedade, particularmente para os mais jovens.
Nem sempre concordamos com os posicionamentos, e eventualmente com o caráter, das figuras públicas. Isso, no entanto, não deveria limitar nossa capacidade de enxergar suas virtudes. Conheço pessoas que pararam de apreciar a grandiosa obra de Chico Buarque por causa de seus posicionamentos políticos. Chico é um virtuoso, Poeta com “P” maiúsculo, compositor extraordinário. Se ele decide se manifestar, contrariamente às minhas crenças, sobre qualquer outro aspecto da vida ou até cometer um crime (que eu saiba nunca o fez), isso não vai mudar minha admiração pelo músico. Tenho maturidade para separar uma coisa da outra, reconhecer as virtudes e os defeitos.
O mesmo raciocínio vale para as instituições. Há vinte anos, aproximadamente, estava eu em Cotia fazendo o curso APG da Amana Key. Oscar Motomura, o gênio fundador da instituição, entrou na sala e disse que estávamos lá para fazer um treinamento sobre gestão, mas que iríamos aprender não com a gestão em si, mas com a música, com a arte, com a física, com a medicina, enfim, com outros ramos do conhecimento. Nosso desafio seria encontrar as analogias e trazer o ensinamento adequado para nossa realidade. Disse, também, que iríamos aprender com instituições e movimentos. Em um determinado momento, citou que uma das fontes de estudo seria o narcotráfico. Foi um alvoroço. “Como assim?!?”, indignaram-se alguns, não poderíamos ter o crime como referência. Motomura, com sua calma característica, explicou que não era o caso de apologia ao crime, mas que as instituições do tráfico sabem se comunicar de forma extremamente eficiente, conseguem um grande engajamento da comunidade e possuem um sistema de previdência social muito melhor que o oficial. Mostrou-nos que, mesmo naquilo que mais desejamos combater, sempre se pode encontrar virtudes.
A sociedade em geral, no entanto, prefere as análises simplistas, sem considerar todos os ângulos, deixando-se levar pela posição das redes sociais ou da mídia. Esse é um dos fatores que tem separado o Brasil quanto às questões políticas. Quem considera o presidente anterior um crápula, parece ser incapaz de reconhecer os diversos aspectos positivos do seu Governo. Quem o considera um herói nacional, por sua vez, é incapaz de reconhecer suas transgressões. Vale o mesmo para o presidente atual. Defesas e ataques monocórdicos. Ocorre que a vida é mais complexa, repleta de sutilezas, com prós e contras.
Vejamos o caso da Justiça Eleitoral brasileira. O segundo turno das eleições municipais se encerrou sem qualquer problema significativo. Em poucas horas, o resultado integral se encontrava ao dispor do público, com ampla divulgação na mídia. A despeito dos problemas ocorridos no primeiro turno, as eleições, uma vez mais, transcorreram de forma eficiente, célere e segura. Os tribunais eleitorais brasileiros são perfeitos? Não. Estão suscetíveis a erros? Evidentemente. Mas é preciso reconhecer que a urna eletrônica, e tudo que a cerca, proporciona o melhor processo eleitoral do mundo. Conforme já mencionei, no entanto, a opinião pública é movida por uma enorme quantidade de fatores, os quais, no presente caso, fazem com que uma parcela da população defenda um apêndice da urna que imprima o voto. Ou seja, após conferência do eleitor, um papel seria depositado em um recipiente próprio e utilizado, em alguma circunstância não claramente definida, para comparações com o resultado eletrônico.
Quando se analisa a sugestão superficialmente, pode-se concluir que só há ganhos nessa adição, mas na prática, o que ocorre é justamente o contrário. O primeiro aspecto relevante é a ampliação da quantidade de falhas. Quando se soma um componente a mais, por óbvio, há um fator adicional de risco. Quando o dispositivo envolve bobinas de papel, onde os votos seriam impressos, o problema é maior. Umidade do ar, armazenamento e tudo que envolve a mecânica de imprimir elevam o risco de mau funcionamento. Imagine uma seção eleitoral que tenha recebido 90% dos votos e a impressora trava nesse momento. O que fazer com aquele voto? Será revelado? Será desconsiderado? Além disso, não é simples trocar a impressora, interromper a votação ou continuar a votação sem a impressora. A solução mais provável seria passar para o voto manual. O número de urnas eletrônicas, que apresentam defeito durantes as eleições, é muito baixo. Por exemplo, no segundo turno deste ano, foram utilizadas 97.024 (noventa e sete mil e vinte e quatro) urnas e apenas houve uma seção com votação manual. Com o dispositivo da impressão anexado, esse número pode ser multiplicado várias vezes.
Um segundo ponto relevante é o que fazer com o voto que foi impresso. Suponha que ele seja utilizado, em seções escolhidas pelos partidos, para conferir o resultado daquela urna específica. Até que ele seja contado, deve ser transportado, momento no qual a fragilidade é enorme. Votos podem ser acrescentados na urna, suprimidos ou trocados. Para garantir a integridade seria necessário um esquema de segurança gigantesco. Ademais, suponha que a contagem manual apresente diferença em relação ao computo eletrônico. O que fazer? Recontagem até que os votos batam? Consideram-se os votos impressos e anulam-se os eletrônicos ou seria melhor o contrário? Anula-se a urna? Não há resposta fácil. A adição traz uma complexidade difícil de se lidar. Contar votos manualmente, em função da intervenção humana, é mais suscetível a fraudes que qualquer processo eletrônico, motivo pelo qual, a introdução do voto impresso traria consigo um gigante ponto de vulnerabilidade.
Um terceiro fator a ser considerado é o comportamento individual do eleitor. Imagine, por hipótese, que você é um mesário voluntário e se depara com a seguinte questão: o eleitor votou, confirmou o voto e saiu da cabine esbravejando que o voto que foi impresso não foi o mesmo que ele escolheu eletronicamente. O eleitor afirma que conferiu o voto impresso e garante que ele está diferente. O que você faria nesse momento? Mais uma vez, não há solução trivial. Fiscais dos vários partidos serão chamados, haverá atraso na votação, acusações de parte a parte e ninguém impedirá a inserção de uma mácula que poderia ser evitada. Em suma, introduzir o voto impresso concomitante ao voto eletrônico traz muito mais prejuízo ao processo do que a alegada (e infundada) segurança adicional. Sem falar nos volumosos custos envolvidos.
Outro caso interessante é o combate brasileiro à COVID. Nosso país optou, há mais de trinta anos, pela universalização do atendimento da saúde por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS. Mesmo ineficiente e caro, o sistema salvou milhares de vidas, em especial daqueles com menor renda. Julgar o SUS considerando apenas uma ou outra faceta é superficial e serve somente para propagar notícias na mídia.
Ideias, pessoas e instituições possuem virtudes e defeitos. Não há perfeição no plano terrestre. Dependendo das crenças, de uma situação específica, de um sentimento predominante, os indivíduos são levados a fazer avaliações rápidas e simplistas. Algumas vezes, com foco nas coisas boas, em outras, nas ruins. Um mundo melhor depende de mais parcimônia no julgamento, de mais sabedoria e de mais tolerância. O convite desse artigo é justamente esse, uma chamada para reconhecer os aspectos mais profundos da realidade, em contrapartida aos posicionamentos imediatos e parciais, característicos das facções.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.