Por Flávia Lefèvre* – Há um consenso entre representantes de diversas correntes do próximo governo Lula: as comunicações serão centrais para a governabilidade e para lidar com as perplexidades, incertezas, retrocessos e pressões que as tensões políticas resultantes do avanço das forças de direita nos impuseram nos últimos seis anos e ainda nos imporão no campo dos debates públicos que estão por vir.
Quando falamos de comunicação estamos tratando não só especificamente da comunicação do governo com a sociedade, mas de aspectos regulatórios de telecomunicações e suas implicações para a universalização e distribuição não discriminatória da infraestrutura e das características dos planos de serviço de acesso precário a Internet predominantes no Brasil hoje.
De todas essas frentes a que menos preocupa é a comunicação do governo com a sociedade, pois, durante o processo eleitoral de 2022, tudo indica que o Partido dos Trabalhadores (PT) tomou consciência da importância de não só se ocupar as redes para criar engajamento do público com os projetos que se pretende implantar, mas também para confrontar os ataques das forças adversárias.
Entretanto, as últimas notícias veiculadas na imprensa sobre as propostas do grupo de transição das comunicações para universalizar o acesso a Internet são as que mais nos preocupam, pois o que estaria sendo definido como prioridade imediata seria uma “bolsa Internet”, com o objetivo de reduzir o preço da conexão de banda larga para os cidadãos cadastrados no Cadastro Único do Governo Federal.
Há dois problemas com esta proposta. O primeiro decorre do fato de que a distribuição da infraestrutura que dá suporte ao serviço de conexão a Internet é gravemente desigual no país. Mesmo em cidades que concentram consumidores com renda para o consumo, como é o caso de São Paulo, nas periferias não chega fibra ótica e a disponibilidade de torres para o acesso móvel é insuficiente para garantir um acesso efetivo aos cidadãos de baixa renda.
Dados divulgados em 2021 pela Rede Nossa São Paulo mostram que no Itaim Bibi – bairro rico da cidade – há 48,3 Estações Rádio Base por Km2, sendo que no bairro Marsilac – periferia pobre, há 0,02 ERBs.
Essa realidade, resultado da falta de políticas públicas eficientes que induzam investimentos em infraestrutura capaz de atender a demanda por acesso a Internet, se reproduz nas localidades e regiões mais pobres do país e tem sido responsável pela predominância dos planos de franquias mensais irrisórias – segundo a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) a média é de 3 Gb, com bloqueio do acesso quando esgotados os dados contratados, trafegando apenas os pacotes do Facebook e do WhatsApp.
De acordo com os parâmetros da União Internacional de Telecomunicações (UIT), deve haver no máximo 1.500 usuários por antena para que o serviço opere com padrões mínimos de qualidade. A média em São Paulo é de 3.000 usuários por antena, sendo que na Avenida Paulista, por exemplo, temos menos de 1.000 e na periferia chega-se a ter bairros, como Cidade Tiradentes com mais de 15.000 usuários por antena.
É esse cenário de insuficiência de infraestrutura, tanto para o acesso fixo quanto móvel a Internet, que explica o motivo pelo qual predominam no país os acessos móveis por meio de planos pré-pagos – são mais de 80 milhões de brasileiros pagando caro por um serviço precário.
Sendo assim, conceder uma bolsa Internet, sem se enfrentar desde já a insuficiência de infraestrutura, significará reforçar a perpetuação desse modelo antidemocrático e ilegal de prestação do serviço, que fere as garantias de neutralidade de rede conquistadas com o Marco Civil da Internet e, pior, conceder recursos para a contratação de um serviço que hoje não está disponível em grande parte das regiões mais pobres do país.
Além disso, representará transferência volumosa e injusta de renda para o bolso das teles – VIVO, Claro e TIM, que já concentram largamente o mercado de acesso móvel, inclusive por conta dos últimos eventos envolvendo a compra da operação móvel da Oi por essas três empresas e do resultado do leilão do 5G que as beneficiou largamente, criando uma situação de acomodação, sem obrigá-las, de imediato, a fazerem os investimentos necessários em infraestrutura.
E, de acordo com as matérias divulgadas pela imprensa, a transferência de renda se daria também por meio de benefícios fiscais; ou seja, reduzindo-se a arrecadação para os cofres públicos sem as correspondentes e adequadas contrapartidas. Valendo lembrar que sobre o serviço de conexão a Internet não incide ICMS, pois se trata de serviço de valor adicionado (SVA) que é um tributo estadual, sobre o qual o Governo Federal não tem poder de reduzir.
Esperamos que o Presidente e o próximo Ministro das Comunicações avaliem melhor esta proposta, que poderá representar um empecilho para que a promessa de campanha de “revisar a lei de banda larga para extinguir o limite do consumo de dados e melhorar a velocidade da conexão”, como Lula disse na entrevista do Flow Podcast em 18 de outubro deste ano, possa de fato se cumprir.
Se o objetivo é democratizar as comunicações, será necessário exterminar com este modelo perverso, ilegal e discriminatório de plano pré-pago de serviço e reforçar desde já as políticas públicas de investimento, de modo que a distribuição de infraestrutura acabe com a realidade que enfrentamos hoje – uma Internet ilimitada para os ricos e outra limitada e precária para os pobres.
*Flávia Lefèvre é Advogada e Mestre em Processo Civil pela PUC/SP.
*Publicado no Mobiletime em 13/12/2022.