Por Jeovani Salomão* – Black Mirror é um seriado de ficção científica que ocorre em um futuro próximo, explorando conflitos entre a natureza humana e avanços tecnológicos. Os episódios não guardam um mesmo elenco em comum, nem há uma história que os conecte. O que torna o conjunto de filmes isolados em uma única obra é a constante provocação dos impactos exacerbados de uma tecnologia específica e seus efeitos na sociedade.
No primeiro episódio da terceira temporada, o tema central é a reputação nas redes sociais. Ao encontrar com qualquer indivíduo, seja ele conhecido ou apenas um estranho no trânsito, as pessoas desta distopia são capazes de identificá-lo e, automaticamente, por meio do uso de uma lente de contato altamente desenvolvida e conectada à rede mundial de computadores, associá-lo a uma nota única proveniente da rede social.
Além disso, estão aptos, em função da interação, de dar notas para os outros, as quais, imediatamente, são computadas e alteram a qualificação do indivíduo que as recebeu. Quanto maior sua própria avaliação, mais impactante é sua opinião sobre o outro. Mais ainda, autoridades de segurança, além da autonomia individual de atribuir pontos, possuem poderes institucionais para punir um infrator da lei, rebaixando sua reputação e fazendo com que avaliações negativas tenham efeitos duplicados por um determinado período de tempo.
O ranking criado passa a servir como referência para qualquer atividade. Para quem tem nota próxima de 5, as portas estão sempre abertas, há descontos, exclusividades, mimos, acessos diferenciados em clubes restritos e alta visibilidade. Se, no entanto, a pessoa tem nota mais baixa, ela terá dificuldade para ter um emprego respeitado, alugar um imóvel em bairro digno e até restrições para frequentar bons ambientes. Como a reputação deriva diretamente da avaliação daqueles com os quais os indivíduos se relacionam, cria-se um ambiente artificial onde todos procuram agradar a todos.
Se você ainda está tendo dificuldade para imaginar um mundo assim, vamos pensar em exemplos que já ocorrem naturalmente conosco na atualidade, como é o caso do Uber. Assim que uma corrida é selecionada, será assignado para atender o seu chamado um motorista do aplicativo. Neste momento, você será capaz de ver o nome, o carro, a placa e a nota do motorista. Se ele tiver nota excessivamente baixa, é possível que você prefira cancelar e escolher outro motorista. A avaliação do requisitante também é visualizada pelo uberista, de forma que a recíproca pode ser verdadeira, se um passageiro se comporta mal com frequência e tem nota baixa, pode ser recusado. Ao término da corrida, há uma avaliação mútua que é processada e modifica o status de ambos. De certa forma, o sistema “obriga” um comportamento civilizado, inclusive porque motoristas muito mal avaliados podem ser descredenciados pelo aplicativo.
Fazemos algo similar em outras plataformas, como Mercado Livre, Tripadvisor, Airbnb e Vivino. A opinião da coletividade sobre um determinado produto ou serviço cria uma reputação que interfere diretamente na performance futura daquilo que é avaliado. O sistema de atribuir estrelas é extremamente simples, compreensível e muito útil, motivo pelo qual avança com força na medição da satisfação dos clientes avaliadores. Exagerar a importância desta nota e inserir o comportamento individual nas avaliações foi justamente a mistura na qual Black Mirror se inspirou para o mencionado episódio.
Ocorre que o conceito de reputação precede em muito o modelo de redes sociais previstas pela ficção. Mesmo sem conhecer, cada um de nós forma juízo sobre pessoas, em especial as públicas, pelos seus supostos feitos, bons ou ruins. É claro que a mídia está pouco preocupada com a repercussão da notícia para a família, amigos, vizinhos e a comunidade com qual a pessoa retratada se relaciona. O que importa mesmo é a audiência. Quanto mais escândalo, melhor. Quanto pior a acusação, melhor. Quando mais obscenos e hediondos os supostos atos, melhor.
Infelizmente, a proliferação das guerras políticas pelos aplicativos de comunicação criou novos e inconveniente atores: “os repassadores por conveniência”. Estes são aqueles que não fazem filtros, não pesquisam, não tentam descobrir se a notícia é verdadeira ou falsa, basta apenas que atenda aos seus próprios interesses ou convicções para espalhar para suas dezenas de grupos.
Na semana que passou, recebi de um desses indivíduos uma notícia difamatória sobre um conhecido meu. Tenho absoluta certeza de quem replicou a fake news não conhece a pessoa, tanto é que o nome da vítima veio grafado incorretamente. O autor da façanha de espalhar mentiras parece ignorar que o difamado por ele tem família, esposa, filhos, amigos, colegas de trabalho e um histórico de prestação de serviços sérios ao país. Deve se esquecer, também, que se trata de um ser humano com sentimentos, que pode se sentir humilhado e potencialmente afetado psicologicamente, com efeitos incalculáveis. O acusado, no recente ocorrido, não chega a ser uma personalidade pública, não é um figurão, não é um dos que ditam os rumos do país, apenas defende uma causa que o político preferido desse “repassador por conveniência” abomina.
Talvez estes repassadores de informação devessem experimentar um pouco de empatia e se colocar na pele daqueles que estão atacando. Fico me perguntando se algum político, por melhor e mais bem intencionado que seja, vale tanto a ponto de que seus seguidores cegamente ataquem a reputação de pessoas que sequer conhecem. Antes das notas negativas que serão atribuídas a mim e ao meu texto pelos fanáticos, esclareço que acredito na defesa de ideais políticos e que as pessoas públicas possuem consciência de que irão se expor ao ocupar posições de destaque. Isto, no entanto, não deveria dar o direito a ninguém de destruir a imagem daqueles que não conhecem e que sequer estão nesta posição.
*Jeovani Salomão é fundador e presidente do Conselho de Administração da Memora Processos SA e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.