Reconhecimento facial: inovação cercada de riscos


Por Isabela Cardoso* – O reconhecimento facial, antes restrito a bancos e grandes corporações, já chegou a um espaço cotidiano: os condomínios residenciais. A promessa é atraente. A tecnologia oferece agilidade no controle de acesso, reduz custos, elimina chaves e cartões, e transmite a sensação de maior segurança para moradores e visitantes.

Em muitos empreendimentos, basta encarar a câmera para liberar a entrada. Além da praticidade, o recurso projeta modernidade e pode até valorizar o imóvel no mercado. Mas, na prática, a experiência mostra que a inovação traz consigo dilemas técnicos, jurídicos e éticos que não podem ser ignorados.
Nos últimos anos, operações da Polícia Federal — como a Face Off — revelaram fraudes sofisticadas em sistemas biométricos, com uso de deepfakes e manipulações para burlar autenticações, inclusive no Gov.br.

Dados recentes apontam que o Brasil registrou aumento de 822% em fraudes com deepfakes entre o 1º trimestre de 2023 e o mesmo período de 2024, índice muito acima dos observados nos Estados Unidos e na Alemanha. A criminalidade avança na mesma velocidade que a tecnologia. Por isso, confiar cegamente no reconhecimento facial pode ser perigoso.

Além da vulnerabilidade técnica, há riscos de corrupção e má gestão em contratos de alto valor estratégico. O histórico de investigações do TCU e da CGU sobre softwares e sistemas mostra que falhas de transparência abrem espaço para superfaturamentos e favorecimentos ilícitos. Condomínios, em menor escala, não estão imunes a esse tipo de problema.

Outro aspecto sensível é a privacidade. O rosto é um dado biométrico permanente, classificado pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) como sensível. Vazamentos podem expor moradores a riscos concretos e gerar responsabilidades civis, administrativas e até criminais para síndicos e gestores.
A LGPD também proíbe a obrigatoriedade: ninguém pode ser forçado a cadastrar seu rosto como condição para entrar em casa. Alternativas como cartões, senhas ou QR Codes devem sempre estar disponíveis.

Há, ainda, falhas técnicas e vieses algorítmicos. Pesquisas demonstram que sistemas de reconhecimento facial apresentam margens de erro muito mais altas para pessoas negras, indígenas e asiáticas do que para indivíduos brancos. Isso pode resultar em constrangimentos, disputas internas e processos judiciais.

Assim, a decisão de implantar o reconhecimento facial em um condomínio deve ser precedida por amplo debate em assembleia, com riscos e benefícios discutidos de forma transparente. O consentimento dos moradores precisa ser obtido individualmente, por escrito, em termos claros. Já o contrato com o fornecedor deve prever responsabilidades objetivas, padrões de segurança, regras de exclusão de dados e auditorias periódicas, de preferência conduzidas por especialistas independentes.

O passo seguinte é estruturar uma política interna de proteção de dados, documento que organize coleta, uso e descarte das informações biométricas. Sem governança sólida, auditorias e fiscalização, o que deveria reforçar a segurança pode se transformar em fonte de litígios, insegurança e até corrupção.

O reconhecimento facial pode ser aliado da gestão condominial, desde que tratado com cautela. A tecnologia precisa estar integrada a uma estratégia de segurança mais ampla, que combine inovação com responsabilidade jurídica, ética e social. O verdadeiro desafio não é apenas erguer barreiras digitais, mas fortalecer a confiança, a integridade e a convivência dentro dos muros do condomínio.

*Isabela Cardoso – Consultora em Proteção de Dados.