Depois de meses parado, sem nenhuma manifestação em quatro comisões permanentes da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar nº 234/23, de autoria do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que estabelece um “Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados” voltou a andar. A proposta, que pode abranger tanto pessoas físicas, quanto jurídicas, a partir de agora passará a ser analisada numa comissão especial. O PLP 234/2023 pretende estabelecer no Brasil a monetização dos dados (comercialização) baseada numa “Lei Geral de Empoderamento de Dados”.
“O Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados é o ecossistema de dados por meio do qual as pessoas físicas e jurídicas residentes ou com sede no território nacional atuam na produção, coleta, armazenamento, custódia, distribuição, compartilhamento e processamento de dados, com vistas a objetivos comuns, definidos livremente entre as partes, nos termos de contrato”, define o projeto Chinaglia.
A proposta de Chináglia quer tornar mais clara a garantia do “pleno direito de propriedade do titular” dos dados pessoais por meio de acesso e utilização de plataformas eletrônicas online, aplicações de internet, marketplaces, portais e sítios, relações de consumo, utilização de dispositivos de qualquer espécie, conectados à rede mundial de computadores, que gerem dados relacionados ao seu usuário, inclusive em âmbito doméstico (IoT), passíveis de serem coletados, processados ou distribuídos, aquisição ou venda de bens e serviços de qualquer natureza; conforme o descrito no inciso primeiro do Artigo 5º.
Chinaglia entende que a legislação também irá “promover a concorrência entre os agentes econômicos ou instituições que atuem como controladores, receptores, detentores e transmissores de dados”, além da geração de renda e poupança individual “por meio do exercício de direitos de propriedade de dados pelo titular de dados”.
A proposta é bastante polêmica, pois não somente estebelece que a pessoa física ou jurídica são proprietárias dos seus dados e, se desejarem, podem comercializá-los com as plataformas e empresas na Internet da maneira como quiser, mas também permite, por exemplo, que os pais podem comercializar os dados dos seus filhos dependentes, que seriam acompanhados por empresas ao longo de suas vidas.
Tramitação
Originalmente o projeto deu entrada na Câmara em 2023 e a presidência da Casa designou quatro comissões permanentes para avaliar o texto: Comissão de Defesa do Consumidor (CDC), Comissão de Comunicação (CCOM), Comissão de Ciência e Tecnologia (CCTI), e Comissão de Finanças e Tributação (CFT). Com isso, ganhou um status de importância e foi transferida para análise numa comissão especial, que pode tramitar em regime de urgência para acelerar a votação no plenário.
Mesmo assim, dada a complexidade dessa legislação, ela deverá passar por um longo período de debates e audiências públicas, antes que o relator ( ainda não designado) apresente o seu parecer e eventuais modificações no texto, ou até mesmo um projeto substitutivo.
A Lei Complementar 234/2023 de Arlindo Chináglia (PT-SP), se aprovada ierá alterar o texto de diversas outras legislações, o que não será fácil de tramitar. A proposta mexe com as seguintes legislações:
Lei Complementar nº 111, de 6 de julho de 2001 – Dispõe sobre o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza;
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Instituiu o Código Civil;
Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003 – Altera a Legislação Tributária Federal;
Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – Marco Civil da Internet;
Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Monetização
De acordo com o projeto, entende-se por monetização de dados, ” a coleta, análise, agrupamento, processamento e comercialização de dados obtidos por uma instituição detentora de conta de dados ou
receptora de dados mediante livre consentimento de uma pessoa física ou jurídica para a geração de receita ou benefício econômico de terceiros, por meio de plataformas eletrônicas online, aplicações de internet, marketplaces ou ecossistemas de dados”.
Com base nesse princípio, Chináglia definiu que a comercialização dos dados, mediante o consentimento prévio do dono deles, será feita por empresa especializada, que se encarregará de negociá-los junto às plataformas de Internet. Mas as aplicações de Mensageria (troca de mensagens como o WhatsApp ou Telegram) e de serviços de voz (Skype), por exemplo, não estão abrangidos na proposta de legislação por decisão do autor.
Toda a transação com dados terá rígido controle. No Artigo 46 desta proposta de lei, o deputado petista propõe a obrigatoriedade de disponibilização ao titular de dados pelas instituições um mecanismo, ferramenta ou aplicativo digital para monitoramento e controle e gestão do uso e compartilhamento de dados ou informações pessoais. O uso de criptografia/blockchain ou tecnologia que assegure a privacidade e segurança do controle deverá ser aplicado nesse mecanismo de controle.
O que é passível de comercialização
Hoje em dia, dificilmente um internauta desconhece que os seus dados já são usados por plataformas de Internet, empresas de aplicativos, jogos eletrônicos, etc. Não há como não saber, pois qualquer acesso a um determinado produto ou página na Internet o usuário recebe a imediata mensagem que pede o consentimento para acesso à arquivos em geral (fotos, dados de navegação, videos, etc). A LGPD inclusive estabeleceu a obrigatoriedade das páginas pedirem consentimento para o uso de “cookies” que levantarão os dados de navegação.
A proposta de Chináglia cria justamente um ambiente de comercialização, pois os donos desses dados, que hoje os fornecem de graça, poderão optar em negociá-los através de empresas especializadas obtendo algum lucro com eles.
Mas o internauta precisa entender que ao tomar a decisão de partir para a comercialização dos seus dados, ele automaticamente está aceitando expor, sem filtros, toda a sua vida diariamente. Não há nenhum momento de privacidade; será como se sua vida estivesse o dia inteiro num aquário no meio de uma praça pública, num “Big Brother” da vida real.
Pois não se trata apenas de fornecer nome, CPF, endereço e telefone. A relação dos dados passíveis de comerialização é bem ampla e detalhada. Mostra claramente que, ao optar pelo “sim, desejo negociar”, o internauta passa a consentir que toda a sua vida esteja sendo acompanha oficialmente por empresas que se disponham a pagar por suas informações.
O projeto do deputado Arlindo Chináglia detalhou de forma clara, quais os dados que são negociáveis, bastando que o detentor dessas informações feche um contrato de comercialização com empresa especializada para negociá-los em nome dele:
I – identificadores tais como nome e sobrenome, pseudônimo, endereço postal, identificador pessoal único, identificador em linha, endereço de protocolo de internet, endereço eletrônico, nome da conta, registros de identidade, número do cadastro de pessoas físicas ou jurídicas do Ministério da Fazenda, número do Cadastro Nacional de Informações Sociais ou Cadastro Único de Programas Sociais, título de eleitor, número de carteira de habilitação, do passaporte e identificadores semelhantes.
II – informações comerciais, incluindo registos de bens pessoais, produtos ou serviços adquiridos, obtidos ou considerados, ou outros históricos ou tendências de compra ou consumo.
III – informação biométrica;
IV – informações sobre uso de internet ou outras informações sobre a atividade na rede mundial de computadores, incluindo, mas não se limitando a, histórico de navegação, histórico de pesquisas, e informações relativas à interação de um consumidor com uma aplicação ou anúncio de um sítio na Internet;
V – dados de geolocalização;
VI – informação audiofônica, eletrônica, visual, térmica, olfativa ou semelhante;
VII – informação sobre ocupação profissional ou relacionada com o emprego;
VIII – informação sobre educação que não seja de domínio público;
IX – inferências retiradas de qualquer informação identificada neste parágrafo para criar um perfil sobre um consumidor que reflita as suas preferências, características, tendências psicológicas, predisposições, comportamento, atitudes, inteligência, capacidades e aptidões;
X – informações geradas por dispositivos de qualquer espécie, conectados à rede mundial de computadores, que gerem dados relacionados ao seu usuário, inclusive em âmbito doméstico ou veicular, passíveis de serem coletados, processados ou distribuídos.
No parágrafo 10º o titular tem o direito de “a qualquer tempo, dirigir uma instituição referida no art. 2º manifestação para não compartilhar as dados ou informações pessoais ou relacionadas a transações de qualquer natureza de que participe”. Já no Artigo 40, o deputado definiu a seguinte regra, que é mais incisiva que a própria LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais definiu em seu texto:
“É obrigatória a inclusão, em aplicações de internet, plataformas eletrônicas online, portais ou sítios da rede mundial de computadores ou meios de pagamento que, por qualquer meio ou recurso tecnológico, coletem, capturem ou requeiram permissão de acesso a dados pessoais ou gerados a partir do respectivo uso ou acesso, de uma ligação (link) claro e visível que permita ao titular de dados ou usuário optar expressamente pelo não compartilhamento das informações pessoais ou relacionadas a transações de qualquer natureza de que participe”.
Dados sobre operações financeiras e de saúde não estão previstos diretamente na proposta do deputado petista, pois dependerão de aprovação prévia do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional. Porém, embora não estejam abrangidos por nenhuma norma específica, há uma brecha no parágrafo primeiro do artigo 8º, para que os dados de saúde possam ser incluídos, já que é facultada a possibilidade de novas propostas legislativas inserirem “outros tipos ou conjunto de dados no escopo do Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados, desde que observados os princípios, os requisitos para compartilhamento e as demais disposições desta Lei”.
Órgão regulador e ficalizador
Do Artigo 38 ao 44 da proposta legislativa, todo o processo deverá ser submetido a um órgão fiscalizador e regulador. Sem determinar claramente quem seria o responsável por esse acompanhamento, Chináglia parece ter deixado para uma regulamentação posterior essa questão, caso na discussão do texto na Comissão Especial o relator não tiver embutido o nome do órgão. Já no Artigo 40 a proposta fixa um prazo de cinco anos para os agentes que vão lidar com a comercialização dos dados sejam obrigados a armazenar as informações para efeito de fiscalização.
Aceitação
Desde que entrou em tramitação em 2023, o projeto de lei complementar nº 234 vem sendo submetido auma enquete com o público em geral pela Câmara. A proposta de Chináglia vem tendo boa aceitação, mas o percentual de pessoas que declararam voto contra a iniciativa também é alto.
Como o projeto ainda não começou a andar dentro da casa legislativa, a reação à proposta ainda é tímida. Mas é garantia que assim que a proposta for analisada pelos parlamentares, as reações contrárias tenderão a ficar mais claras. Se em em número superior para barrar o projeto, só o futuro dirá.
O PLP 234/2023 da monetização de dados foi inspirado na proposta da empresa brasileira sediada no Vale do Silício DrumWave, do empresário brasileiro André Vellozo (foto), que conta com o apoio da IBM. Na própria justificativa o deputado Chinaglia cita o empresário e as propostas por eles defendidas.
“Esse modelo rompe com a noção de que quem hospeda o dado, como ocorre com Google, Amazon e Facebook, detém a sua posse e, assim, a propriedade “de fato”, e decide o que fazer com eles, mesmo sem o conhecimento do titular desses dados, que, na forma da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, é a pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento”, afirma o deputado Chináglia.
Com certeza as plataformas citadas não aceitarão passivamente a mais essa proposta de legislação, que mexe diretamente com o seu atual monopólio na comercialização de dados. Em breve elas colocarão o seu “bloco na rua”, para se posicionar contra a aprovação e pelo Congresso Nacional.
*Vai ser muito interessante ver emergir das sombras, aqueles que irão se posicionar contra ou à favor da proposta. Porque os discursos que irão sustentar as teses contrárias ou favoráveis à monetização dos dados pessoais acabarão se misturando, se confundindo entre interesses ideológicos e comerciais. Por exemplo, vai ser divertido ver como o PT irá se posicionar eventualmente contra a proposta de um integrante do partido, deixando transparecer que está apoiando justamente os interesses das plataformas, as mesmas que em outras ocasiões contumam estar em campos opostos.