Plano de IA gasta com estrutura para avaliar aquilo que não tem: regulamentação

No quinto “eixo” do Plano Brasileiro de IA proposto pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o governo anuncia que irá injetar R$ 103,2 milhões entre 2024 a 2028, com recursos não reembolsáveis do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), no “Apoio ao Processo Regulatório e de Governança da IA”. São ações que não estão muito claras quanto aos motivos de se ter chegado a essa conta, muito menos sobre o alcance final das propostas, uma vez que o plano contém um probleminha logo na origem da sua concepção: ainda não há no Brasil uma regulamentação da Inteligência Artificial.

De todo modo, o orçamento criado para esse fim foi dividido em dois programas:

  1. Programa de Aperfeiçoamento do Marco Regulatório para IA – R$ 40,5 milhões
  2. Programa de Apoio à Governança da IA – R$ 62,8 milhões

A primeira pergunta que se faz é: aperfeiçoar um marco regulatório que sequer existe? Até agora o Senado não conseguiu passar da fase de apreciação na Comissão Especial do Senado que regulamenta a IA. O substitutivo do senador Eduardo Gomes (PL-TO), ao texto do PL 2338/24, de autoria do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), teve dois adiamentos de votação. Por provocação da oposição que tem ligações diretas com as big techs, as maiores interessadas de não ver prosperar no Brasil qualquer regulamentação.

Então temos num plano de IA a bagatela de R$ 40,5 milhões de dinheiro a fundo perdido, para aperfeiçoar sabe-se lá o quê. Dentro desses dois programas descritos acima, o MCTI prevê gastar o dinheiro com cinco ações:

  • Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial (OBIA) – R$ 11,75 milhões
  • Centro Nacional de Transparência Algorítmica e IA Confiável – R$ 40 milhões
  • Guias para IA Ética e Responsável – R$ 500 mil
  • Rede de apoio à governança da IA no Brasil – R$ 26 milhões
  • Rede de especialistas para apoiar e qualificar a participação do Brasil nos debates e fóruns internacionais pertinentes a IA – R$ 25 milhões

É muito dinheiro sendo aplicado em ações com resultados no mínimo duvidosos.

Por exemplo, em 30 dias, espera-se que seja criado um “Observatório Brasileiro de Inteligência Artificial (OBIA), que terá R$ 11,7 milhões para gastar exatamente com o quê? O documento não indica claramente quem estará participando deste “observatório” e se receberá algo por trabalhar nele. Nem tampouco informa se irá contratar alguma consultoria para trabalhar para o governo. Se os dois casos fizerem parte desse “observatório”, então não está claro como irão contratar tais pessoas e as empresas de consultoria, nem tampouco todos os processos administrativos para a gestão desses contratos.

Que pessoas serão indicadas e o que se exigirá delas para serem escolhidas para compor esse “observatório”?

A impressão que se tem é que o governo quer criar mais uma sinecura e por para dentro a “companheirada”, que desde a tramitação do PL das Fake News na Câmara vinha sonhando com a criação de uma estrutura para policiar a Internet.

Supondo que o “observatório” funcione dentro das competências estabelecidas no PBIA: “Desenvolver e consolidar indicadores e base de dados para o acompanhamento do uso e desenvolvimento da IA no Brasil“, fica a dúvida sobre o que o governo poderá fazer depois com base nesses estudos. Tomará alguma decisão para interferir no desenvolvimento da tecnologia no país, mesmo sabendo que do ponto de vista regulatório não tem essa competência?

IA confiável

Da mesma forma, a criação de um “Centro Nacional de Transparência Algorítimca e IA Confiável” deixa margens para dúvidas se o governo pretende impor às empresas a quebra dos códigos-fonte de suas aplicações, para avaliar os riscos na utilização delas. Será uma discussão jurídica bastante interessante de assistir com as big techs no Brasil.

Fora isso, ter um “centro” para tratar de “riscos” sem conhecer a raíz de determinado sistema e o que ele pode efetivamente fazer contra alguém, parece uma ideia um tanto vaga para se gastar R$ 40 milhões, sem retorno financeiro algum, provenientes do FNDCT – Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Sem contar que determinados “riscos” já são evidentes à olho nu. Restaria saber se estão ou não embutidos em aplicações de empresas. Esse centro terá poderes conferidos por quem para auditá-las?

No Congresso Nacional a Confederação Nacional da Indústria e todo o setor produtivo na área de tecnologia do país já reagiu contra uma proposta similar de avaliação de riscos. Isso, sem contar as big techs. O governo como dono da iniciativa poderia ser mais claro sobre o que pretende fazer. Terá 120 dias para isso, já que esse é o prazo para a sua estruturação.

Rede de apoio

No plano também estão propostas a criação de duas “redes”, uma de “apoio à governança da IA no Brasil” e outra para dar “apoio à participação do Brasil no debate internacional”.

Em primeiro lugar, que “governança”? Não tem nenhuma lei específica regulamentando alguma estrutura de governança ou o setor de IA no país. Então essa “rede”, que pretende gastar R$ 26 milhões do FNDCT, dará o suporte exatamente a quem?

Já a segunda, que ao custo de R$ 25 milhões, também do FNDCT, pretende dar o suporte à participação do Brasil no debate internacional. Mas o que o Brasil terá de concreto para palpitar lá fora sobre Inteligência Artificial? Esses fóruns de debate já não possuem representação brasileira via Ministério das Relações Exteriores ou agências reguladoras?

Fica a pergunta: vão gastar R$ 51 milhões de um fundo destinado à Inovação (no total), para dar “apoio” a exatamente o quê? O MCTI ou as agentes de viagens poderiam esclarecer melhor essa questão.

Gestão e monitoramento

Para acompanhar todo o processo de execução do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, o governo decidiu criar um Conselho Superior, que terá o encargo de “formular diretrizes, propostas de ações estruturantes, harmonizar as iniciativas para o desenvolvimento da Inteligência Artificial no Brasil”. A Presidência da República estará coordenando os trabalhos, provavelmente a Casa Civil. O Conselho será formado ainda pelos ministérios e representantes do setor empresarial, academia e sociedade civil.

Para dar o suporte necessário aos trabalhos, foi criado também um “Comitê Executivo”, formado pelos mesmos integrantes do Conselho Superior, mas provavelmente com as presenças de secretários-executivos de ministérios. Essa estrutura também terá a incumbência de companhar os trabalhos de “Câmaras Temáticas”.

Será nessa terceira instância que a turma efetivamente colocará a “mão na massa”. As Câmaras Temáricas serão criadas sob o comando de coordenadores de instituições (privadas e públicas). Eles farão todo o acompanhamento do andamento da execução dos principais eixos do plano, para eventual correção de rumos das instâncias superiores.