
“O Carnaval passou, mas a festa ainda não acabou”. É com esse espírito que na próxima quinta-feira, dia 27 de março, um seleto grupo de “autoridades” deverá se encontrar para uma confraternização com as big techs no “Happy Hour Pós Carnaval” – evento promovido pelo Conselho Digital. Que vem a ser o mais poderoso escritório de lobby montado pelas grandes plataformas de Internet, que iniciou os trabalhos em 2019 como secretaria-executiva de uma Frente Parlamentar dentro do Congresso Nacional, mas desde 2023 vem operando sozinha e interferindo diretamente em todas as iniciativas de regulamentação do setor no Legislativo Federal.
O evento tem tudo para “bombar”. Primeiro, porque é uma boca-livre e isso sempre atrai as “moscas” de escalões inferiores do setor público e do Legislativo. Tanto que o convite – que tinha data para ser adquirido pelos pretendentes até o próximo dia 27 – já está esgotado.
A proposta desse happy hour, que será na cobertura do Edifício Íon; mesmo local da sede do Conselho Digital, é oferecer “uma noite de descontração, networking e aquele clima de início de ano legislativo que a gente ama”. Não é a primeira vez que esse escritório de lobby atua junto a assessores de deputados e senadores. Trata-se da velha fórmula aplicada por todos os escritórios de lobby em Brasília. De estabelecer um canal de contato e acesso aos parlamentares no Congresso Nacional e colher informações sobre o posicionamento ou o ânimo deles para determinados projetos de regulamentação e são do intreresse das grandes plataformas de Internet.
Durante o processo de análise do PL da Inteligência Artificial e o parecer do relator, senador Eduardo Gomes (PL-TO), o Conselho Digital reuniu funcionários do Senado para um “brunch” com representantes das big techs, interessadas em impedir o avanço do texto final de Gomes no Legislativo.
“Associados”
O Conselho Digital, se define como uma entidade “sem fins lucrativos”, mas estampa em sua página a informação que tem entre os seus “associados” as plataformas Amazon, Discord, Google, Hotmart, Kwai, Meta, Uber e Tik Tok. As plataformas “X”, 99 e Mercado Livre se retiraram da lista de apoio ao escritório. Até junho do ano passado elas atuavam no Conselho Digital, na batalha contra a regulamentação da IA.
Seu campo de atuação, conforme o Estatuto de criação será:
I. adotar medidas para a defesa de uma internet livre, segura e responsável;
II. propor e defender normas que viabilizam o investimento em inovação, mediante interação e cooperação com autoridades e instituições da sociedade civil, na elaboração e no aperfeiçoamento do sistema normativo;
III. manifestar-se, quando for o caso, sobre temas de interesse da opinião pública relacionados a temas relacionados aos serviços digitais, ecossistema de provedores de aplicativo de internet e demais temas;
IV. representar os interesses de seus Associados perante o Poder Judiciário, incluindo a postulação em Cortes Superiores, seja passiva ou ativamente, seja como amicus curiae;
V. promover a integração entre as empresas membro, com vistas à implantação e ao desenvolvimento das políticas públicas voltadas para a manutenção, expansão, e o fortalecimento do ecossistema de serviços on-line;
VI. promover e realizar eventos como exposições, congressos e palestras visando principalmente o aprimoramento dos Associados e a qualificação das relações dos seus serviços com os demais segmentos sociais;
VII. elaborar estudos, notas técnicas e pareceres com o objetivo de auxiliar a tramitação e o acompanhamento de alterações normativas sempre que o objeto esteja alinhado com os objetivos de seus membros; e
VIII. realizar e divulgar estudos e pesquisas, voltados à defesa dos interesses dos seus Associados.
“É uma entidade brasileira, sem fins lucrativos ou afiliações políticas, que coordena, estuda e representa o ecossistema dos aplicativos de internet e toda a diversidade dos seus modelos de negócios”.
No Estatuto de criação do Conselho Digital fica claro que as empresas bancam financeiramente as suas atividades. São três categorias de Associados: ouro, prata e bronze. A depender da escolha feita pela empresa, sua interferência nas atividades do escritório serão maiores. No caso de ser um “Associado Ouro”, a mais alta categorização, a big tech terá como poderes:
a) direito a falar e ser ouvido nos comitês temáticos que participa;
b) direito a votar nos comitês que participa;
c) direito a solicitar revisão de deliberação de um comitê ao Conselho Deliberativo;
d) direito a presidir comitês temáticos;
e) vaga individual no Conselho de Supervisão Fiscal e Ética; e
f) vaga individual no Conselho Deliberativo.
Apoios Políticos
Não ser afiliado aos partidos não significa que o Conselho Digital não conte com o suporte de parlamentares de várias agremiações. No caso do único sócio e administrador do CNPJ dela, Felipe Melo Franca (foto principal da matéria), essa declaração é controversa. Ele conseguiu obter notoriedade política para as plataformas de Internet, quando trabalhou como assessor parlamentar dos deputados Luciano Bivar (União -PE) e Vinicius Poit (ex-presidente da Frente Digital, do Partido Novo-SP). Ele é considerado pela esquerda como um dos principais articuladores da extrema-direita no Congresso Nacional.
Em 2019 Felipe criou o ICD – Instituto Cidadania Digital e começou a atuar em favor das plataformas de Internet ajudando a articular a Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital na Câmara dos Deputados. O advogado passou a fazer toda a articulação política desse colegiado. O instituto procurava os parlamentares e pedia apoio para modificar textos de projetos de lei ou para derrubarem aquilo que não conseguiam alterar através de pedidos feitos diretamente aos relatores das matérias.
Entre os principais apoiadores, além de Poit e Bivar, destacam-se os deputado (as) Marcel van Hattem, do Partido Novo (RS) e Luísa Canziani (PSD-PR). A parlamentar sucedeu Poit na presidência da Frente Digital. Numa cerimônia de causar inveja a muito político, pois Luisa contou com o discurso de homenagem pela posse feito por Fábio Coelho, presidente do Google Brasil.
E também foi ela que marcou um gol com as empresas. Após pedido de Felipe Melo França, Luísa articulou um encontro do então presidente da Câmara, Arthur Lira com as plataformas de Internet. O encontro chegou a ser registrado por Lira, que deixou claro que a agenda foi para discutir o Projeto de Lei que regulamentava as Fake News (nº 2.638). Foi o primeiro sinal para os defensores da proposta legislativa de que as coisas não andariam bemmais à frente.
Lira chegou a ser homenageado depois com o “Prêmio Alan Turing de Transformação Digital 2021”, concedido pela Google do Brasil. Na cerimônia de entrega ele recebeu o prêmio das mãos de Luísa Canziani e Vinícius Poit, os dois que comandaram a Frente Digital da Câmara. Em 2024 Lira retribuiu a honraria, ao anunciar a criação de um Grupo de Trabalho que faria uma rediscussão do PL das Fake News (nº 2630). Era a senha para as big techs se tranquilizarem porque o projeto original tinha sido engavetado definitivamente após se arrastar na Câmara desde 2020.
Em 2023 Felipe se desligou das atividades no Instituto Cidadania Digital e criou o Conselho Digital, que opera até hoje. O apoio financeiro das big techs tem sido fundamental para que ele possa realizar eventos que visam estabelecer uma “rede de amigos e colaboradores” no Congresso Nacional. É através do suporte delas que Felipe obteve algumas vitórias para a Frente Digital dentro do Congresso Nacional, com a aprovação de projetos importantes do interesse das empresas, como o Marco Legal de Startups; a regulamentação da Telemedicina; a Política Nacional de Educação Digital.
Felipe também atuou na aprovação da Regulamentação da Inteligência Artificial na Câmara e impediu as mudanças que o senador Eduardo Gomes (PL-TO) tentou fazer no texto, quando a proposta passou por comissão especial do Senado. Lá ele contou com o providencial apoio dos senadores Marcos Pontes (PL-SP) e Izalcy Lucas (PL-DF).
CGI
As tentativas de inteferência política do lobista do Conselho Digital em todas as áreas possíveis, para evitar ser pego de surpresa com qualquer tentativa de regulamentação das plataformas de Internet, não ficaram restritas apenas ao Legislativo. Felipe Franca chegou a tentar uma vaga no conselho do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Para tanto, ele encaminhou em 2023 uma carta ao CGI, ainda como “Diretor-Executivo do Instituto Cidadania Digital, na qual solicitava uma vaga no colegiado, sob alegação de que o ICD “tinha os requisitos necessários para participar do Conselho”.
*Não colou.