Por Jeovani Salomão* – Em 1949, George Orwell lançou o livro “1984” retratando um futuro distópico, onde a sociedade era controlada, de forma totalitária, por um partido político. Cada indivíduo era monitorado de forma constante por um dispositivo que era capaz de identificar crimes contra o regime. Foi quando surgiu o termo e o conceito de “Big Brother” que deu origem a diversos filmes, séries e reality shows. Talvez tenha sido a primeira vez em que a invasão de privacidade foi abordada de maneira generalizada pelo uso da tecnologia.
O tema ganhou destaque, de forma bastante interessante, no filme “O Círculo”, cujo roteiro é baseado no livro homônimo de Dave Eggers. Enquanto no caso de Orwell há uma rejeição absoluta pela vigilância, posto que o favorecido é um regime totalitário, no caso do filme, o debate ganha novos contornos. Em síntese, a personagem representada por Emma Watson (para quem gosta, como eu, a mesma atriz de Hermione dos filmes de Harry Potter) vai trabalhar em uma empresa que está desenvolvendo tecnologias para monitorar os indivíduos em tempo integral. Começa então um dilema entre privacidade, por um lado, e melhoria do comportamento social, por outro.
A tese é que, quando somos vigiados, nos comportamos melhor, portanto, a perda individual da privacidade é compensada pelos benefícios sociais de uma vida mais pautada nos padrões coletivos estabelecidos. Supostamente, considerando que o filme transcorre em um ambiente de democracia, os benefícios seriam compartilhados por todos, uma vez que as definições culturais, sociais e legais favorecem a sociedade e não um grupo específico. A verdade é que no filme, quem pretendia gozar dos privilégios era um dos fundadores da empresa, representado por Tom Hanks.
Nas minhas reflexões, acreditava que o ataque a vida pessoal seria crescente contra aqueles com qualquer tipo de destaque. Celebridades, políticos, atletas de renome mundial, grandes empresários, líderes setoriais seriam sempre os alvos preferidos das invasões indevidas as suas questões particulares. Os demais, indivíduos comuns, teriam um pouco mais de trégua, justamente pela irrelevância, sob o ponto de vista econômico, político ou do interesse do público geral. Suas vidas interessariam apenas aos próprios e aos mais próximos. Ledo engano da minha parte.
O avanço das tecnologias que processam grandes volumes de dado (Big Data) decretou o fim da irrelevância. Estamos todos sujeitos a intromissão alheia. Se você acabou de se aposentar, pode ser que tenha recebido a ligação de um banco oferecendo empréstimo. Se você participou das últimas eleições, pode ser que tenha sido influenciado por mensagens dirigidas ao público do seu perfil com grande margem de acerto. Se você fez uma pesquisa na Internet sobre tênis, pode ser que você tenha recebido mais e mais informações sobre produtos similares quando entrou em um site de notícia. Coincidência? Não, você está sendo, em alguma medida, lido, interpretado e invadido por operadores plataformas tecnológicas.
Crianças, adolescentes e jovens adultos, hiperconectados, possuem um nível de exposição ainda maior. Muitos inclusive, tomam pouco cuidado em relação aos próprios posts em redes sociais, facilitando a ação daqueles interessados em seus dados. A situação é tão grave que recentemente um meme na internet fez grande sucesso por sua jocosidade, mas preocupa o fundo de verdade:
“Minha esposa me perguntou por que eu estava falando tão baixo, então respondi que tinha medo do Zuckerberg ouvir minha conversa. Ela riu, eu ri, Siri riu, Alexa riu, Google Home riu. No dia seguinte, recebi uma grande quantidade de ofertas de segurança digital.”
Evidentemente que as dimensões do assunto estão se ampliando a ponto de transcender os inconvenientes pessoais para disputas entre países. O Reino Unido proibiu que a Chinesa Huawei, no dia 14 do corrente, forneça tecnologia 5G para operadoras de telecomunicações do país. Dois dias depois, a União Europeia derrubou regras que permitiam que empresas de tecnologia americanas, como Google e Facebook, processem e armazenem livremente dados fora da EU, usando servidores nos Estados Unidos. Quase simultaneamente, o governo americano tem questionado o Tik Tok para zelar pela privacidade dos dados dos cidadãos americanos que se utilizam dessa rede social, sem contar os ataques ianques constantes a outras empresas chinesas, como a própria Huawei.
Na era digital, o poder do conhecimento sempre foi reconhecido, ocorre que agora, cada pedacinho de informação é valioso, não apenas isoladamente, mas quando processado e correlacionado com milhares de dados. Mesmo com a regulamentação sobre o assunto que avança no mundo inteiro, no Brasil na figura da Lei Geral de Proteção de Dados, e com a ampliação de cuidados pessoais quanto à privacidade, não há como desviar o futuro do inevitável. Nossas vidas estarão a cada dia mais expostas. O Big Brother, ainda que não representado por uma única entidade ou governo, estará cada vez mais presente em nosso cotidiano. Mais uma faceta do “Novo Normal”, dessa vez não por causa da COVID, mas acelerado pela transformação digital que vivemos.
*Jeovani Salomão é empresário do setor de TICs e ex-presidente do Sinfor e da Assespro Nacional.